quarta-feira, 4 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

 6.
Aquela sala parecia ser a sede daquele lugar. Eu estava muito atenta a tudo, porque queria ver algo que não fosse deste mundo, mas tudo o que vi foi um lugar agradavelmente mobiliado, com belos quadros, vasos de cerâmica e tapetes coloridos enfeitando tudo, e plantas, muitas plantas e flores. Se eu tivesse conhecimento de plantas, teria notado que eram espécimes diferentes, mas eu estava tão preocupada em ver coisas diferentes que não notei que as plantas eram diferentes. Foi Lidia quem notou, e de fato ela tinha razão, depois quando conversamos longamente na viagem de volta, concluímos que jamais tínhamos visto ou ouvido falar daquelas flores.

Rowena indicou-me um lugar, frente a uma mesa. Atrás dela havia uma janela que dava para um agradável jardim, e eu vi crianças brincando ali. Era inacreditável o som de canto de pássaros que se ouvia daquela sala. Ela começou a me fazer perguntas, aquelas perguntas básicas que aparecem em qualquer ficha, do tipo nome completo, endereço, idade, estado civil, coisas desse tipo. Ela demonstrava não ter a mínima pressa, toda ela estava à minha disposição, e essa sua disposição acabou com o último restinho de ansiedade que ainda existia em mim. Notei que esse sentimento era comum a todos ali, havia em todos uma entrega total no trabalho que estivessem realizando, demonstrando ser aquele momento a única coisa realmente importante, parecendo não existir mais nada com que se preocupar.

Ela continuou perguntando mais: do meu filho, de meus parentes, de meu trabalho, do que eu gostava, do que eu detestava, e eu me vi recebendo atenção exclusiva creio que pela primeira vez em minha vida.

Quando houve um momento de silêncio, ela se reclinou suavemente em sua cadeira e me disse: fale-me de seus rancores guardados, Bete. Está tão aparente assim, que tenho rancores guardados? pensei. Deviam ser três horas da tarde.

Quando eu terminei de falar era crepúsculo, e salvo uma ou outra pergunta de melhor compreensão, ela não fez interrupção em momento algum. Quando terminei e já pensando em pedir desculpas por ter falado tanto, ela como que lendo meu pensamento disse:

- Não fique chateada. Minha intenção era realmente lhe ouvir. Você não tem tido muito com quem conversar, não é mesmo?...

Ela se levantou e eu a imitei, ficamos em pé na agradável sala, quando então ela me perguntou se eu já tinha tido, em algum momento de minha vida, a sensação de que saia fora do corpo durante o sono, e eu respondi que sim, e muitas vezes. Ela me pediu detalhes e eu dei, foi a primeira vez que me vi falando a alguém desse fato que me era tão peculiar, que me acontecia com tanta frequência.

Também perguntou se eu não me sentia às vezes confusa, principalmente quando estava só em um ambiente, se eu não ficava de repente assustada pensando se estava de fato ali. Eu nunca tinha comentado aquilo com ninguém, até porque nem saberia encontrar as palavras, e quem se interessaria também?...sim, disse, tenho essa sensação desde muito pequena. Eu disse que nesses momentos tinha por hábito cantarolar uma música para me convencer de que estava de fato presente no ambiente.

- Sensação de ausência, ela falou.

Ela se assentou numa confortável poltrona, a roda de sua saia se espalhou macia e delicadamente sobre o tapete laranja, e então me falou muitas coisas de mim que por dentro eu sentia, mas não sabia expressar. Inclusive ela falou isso mesmo, que eu não sabia articular argumentos, que eu tinha enorme dificuldade em me expressar e que portanto desistia de falar, principalmente de falar de mim, e que com isso atraia com muita facilidade cansativas amigas falantes, que abusavam dos meus ouvidos, não era assim? E que atraia conversas fúteis, irritantes problemas alheios, amizades frívolas, pessoas egoístas nada preocupadas comigo e somente com elas mesmas, que se acercavam de mim apenas porque eu era um ouvido aberto. Que como eu não sabia impor meus limites, minha vida era um território aberto que todos invadiam.

-Sim, eu disse, sim! Com exceção de Lidia, eu me encontro profundamente cansada de conviver com todos ao meu redor, muitas vezes me sinto totalmente só no planeta, sentindo que devo ter nascido no lugar errado...

Rowena então se levantou, me estendeu a mão e eu me levantei também, e ela me deu um longo e demorado abraço, como nunca eu tinha jamais recebido de ninguém, e eu me senti deliciosamente amparada e confortada como jamais me sentira até ali.

Foi então que chorei. Convulsivamente. Como nunca em toda a minha vida eu tinha chorado.

Continua...