segunda-feira, 30 de março de 2009

A secretária rebelde

- Elizabeth, infelizmente você é uma excelente secretária!

Pois é, acredite se quiser, isso foi um elogio. E dos melhores que já recebi.

Veio da doutora Cleyde Rosa Campanini, uma charmosa advogada, que além de charmosa era extremamente competente, a ponto de estar à frente da Diretoria Jurídica de uma importante instituição financeira.

E eu era secretária da diretoria.

Mas para que vocês possam entender o elogio, vamos ampliar o contexto da história.

Eu era um fenômeno na datilografia. Na verdade sou até hoje, só que hoje chamamos digitação.

Eu sou capaz de digitar um texto sem olhar para o teclado, conversando com uma pessoa ou cantarolando ao mesmo tempo, ou tudo isso.

Datilografávamos imensos contratos, e eu era capaz de dar conta de dez páginas em mais ou menos quarenta minutos, e sem errar.

Mas se errasse, não havia problemas. Eu dominava também a técnica de consertar erros, domino até hoje. Pena que não posso contar aqui as gambiarras que já fiz, seria altamente comprometedor.

Além disso eu possuía uma excelente memória, algo necessário em departamento jurídico. São inúmeros os processos e os desmembramentos. Naquele tempo não tínhamos o benefício da informática, as informações ficavam nas nossas cabeças mesmo. E a minha memória abarcava tudo, era excelente.

Como eu era um trator nos serviços, sobrava-me tempo. E eu usava esse tempo para fazer todo tipo de traquinagens.

Quais? Coisas simples, inocentes brincadeiras de escritório. Mas que deixavam os colegas extremamente irritados. Colocar um monte de clipes nos bolsos e bolsas das pessoas. Colar cuidadosamente com fita transparente os objetos nas mesas, quer coisa mais irritante do que pegar uma caneta e ela estar colada? Colar o fone ao aparelho. Unir as pontas das tesouras com fita adesiva. Amarrar todas as canetas e lápis e tesouras uma a uma com barbante e deixar tudo bem ajeitadinho, para o sujeito puxar um objeto e trazer todos... Colocar papel picado dentro dos jornais, essa eu adorava. Nos escritórios sempre há um chato que detesta que mexam em seu jornal. Então eu picava papel meticulosamente, e colocava bem no meio do jornal do chato, e deixava muito bem arrumadinho, para cair tudo no colo dele quando abrisse...

Algumas mais maldosas também, como colocar sal no café das pessoas. Também já enchi de clipes os lanches de muita gente.

E eu era campeã dos recados falsos. – Dr. Fulano está lhe chamando. Lá ia o funcionário, pois não doutor, me chamou?

Dali a pouco o sujeito voltava cuspindo marimbondos.

Eu tinha uma aliada, uma colega chamada Elisa Augusta, e nós duas competíamos em traquinagens. Mas como éramos muito alto astral, a raiva dos colegas não durava muito. No máximo um dia. Elisa adorava se esconder atrás das portas e passar susto nas moças, num pulo:

- Búúúúúú!

E o engraçado era que as moças sempre se assustavam.

- Essas duas são terríveis! Era o que sempre diziam...

Não pensem que brincávamos só com os iguais. Brincadeira que se preze, precisa ser corajosa, por isso nossas vítimas iam desde os mais humildes até os mais pomposos diretores.

- Dr.Barbosa, na hora do almoço veio aí o devedor tal, e quitou toda a dívida para com o Banco, o cheque está aqui, veja.

Todo falsificadinho, um capricho. Lembro que esperamos o banco fechar, para descer até a agência central e utilizar uma velha máquina de chancela mecânico, ficou um cheque administrativo perfeito.

- Liga para o presidente, liga para o presidente! A soma era enorme.

- Ai Jesus, e agora? Tivemos que dar conta da mentira, rindo até não poder.

- Eu sabia, bobas...pensaram que me enganaram?...

- Pensamos não, doutor, temos certeza.

Como se tudo isso não bastasse, eu era a anti secretária. Quando todas usavam saia justa, camisa de seda e saltos altos, eu usava calça jeans e camiseta branca. Tênis. Recusava-me terminantemente a servir cafezinhos: - não sou copeira. Um dia um advogado me pediu para pregar um botão no punho de sua camisa que se soltara: - peça para sua esposa, doutor. E saia batendo a porta. Arrumar mesas, molhar plantas, ninguém conseguia de mim essas tarefas.

- Sou secretária, não dona de casa.

Dai o desabafo da doutora Cleyde. Infelizmente você é uma ótima secretária, porque senão...

Senão, vocês já sabem....seria rua na certa.

Mas um dia eu me formei em Administração de Empresas, e junto com um buquê de rosas, um cartão assinado por todos e um belo relógio, ela me deu também uma promoção.

- Estou mandando você para um curso de formação de novos gerentes, Elizabeth. Você tem potencial para muito mais do que as funções que desempenha aqui.

Na verdade a boa senhora estava era tratando de se livrar de mim com elegância.

E lá fui eu, e para uma função que não combinou nada comigo, fui um desastre como gerente de banco. Antes tivesse ficado para sempre lá, onde além de extremamente produtiva eu era feliz.

Saudades daqueles tempos. Muitos daqueles advogados já morreram. Elisa foi madrinha do meu filho, mas perdemos o contato também. Até quando a vi pela última vez, ela ainda conservava seu notável bom humor.

E eu nunca mais vivi num ambiente de trabalho divertido assim, imagina. Do jeito que as pessoas hoje são estressadas e mal humoradas, uma simples brincadeira daquelas acabaria em processo por assédio moral.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Oncotô? Doncovim? Proncovô?

 Oncotô? Doncovim? Proncovô?

Hoje acordei com essa tríplice filosofia existencialista mineira em minha cabeça. Foi o caso que lembrei da Erlita, uma leitora mineirinha que sumiu daqui uai...

Será que ela subiu pro andar de cima?

Erlita, se você ainda estiver entre nós, dê sinal de fumaça.

Se você já estiver despachando diretamente com papai do céu, rogai por mim.

E antes que me amolem, segue glossário:

Oncotô? = Onde é que eu estou?

Doncovim? = De onde é que eu vim?

Proncovô? = Pra onde é que eu vou?

Coisa de mineiros.Porque eles falam assim? Tenho uma preguiça enorme de explicar, e para falar a verdade, nem sei se há explicação.



 

segunda-feira, 23 de março de 2009

O iceberg ou o mar da fé

 Com a entrada da banda larga em minha vida, entrou também uma enxurrada de informação, e eu passei um bom tempo lendo tudo e filtrando o que me interessava. Sempre me interessei mais por assuntos ligados à fé cristã.

Com isso conheci muita gente boa, vocês certamente, e com vocês, muita informação interessante. Pela graça de Deus, conheci alguns abençoados que me ensinaram um novo jeito de ver as coisas, uma nova pegada. Sou feliz por ter conhecido pessoas, dentro e fora da net, que me ensinaram que há vários enquadramentos para a verdade, e com isso fui ampliando minha percepção.

Com isso também, certos conceitos cristalizados em mim começaram a se partir, e se de um lado era bom, por outro me assustava. Assustada eu me dei conta de que estivera plantada num enorme iceberg, que dia após dia ia perdendo uma beirada. Chegou o momento em que eu vislumbrava apenas um pequeno espaço para os pés, e o resto era mar.

Mas chegou o grande dia, algum de vocês me apresentou uma instigante leitura da verdade, e com ela eu senti que não havia mais nenhum apoio, que eu estava solta no mar da fé.

A princípio, senti vontade de sair compartilhando essa experiência com as pessoas, cheguei mesmo a fazê-lo:

- Abandone essa fé utilitária, eu dizia. Essa crença amuleto. Esse deus com d minúsculo que você vive tentando agradar, por medo. O mar da fé pode parecer assustador, mas liberta. Claro, ninguém me ouviu.

Quem ouviu fui eu mesma: - Elizabeth, o que você pretende com isso? Já lhes contei que Jesus me chama de Elizabeth, à inglesa, com acento no i?

- Pretendo que as pessoas abandonem sua zona de conforto espiritual, que elas partam em busca de uma vivência madura de fé...

- E?...

- Como "e"? é isso.

- Você quer quebrar o iceberg das pessoas, assim como foi quebrado o seu?

- Sim.

- E se elas não souberem nadar...? boiar? você faz o quê?

Entendi que seria assumir uma enorme responsabilidade. A experiência da noite escura da alma não pode ser ensinada, apenas vivida, e nem Deus comparece para ajudar. Uma vez imersa no mar da fé, a pessoa está sozinha. Líderes religiosos não pregam sobre a noite escura. Não existem sete semanas de oração para a noite escura. Não existem cultos ou reuniões especiais para a noite escura. Não existe literatura para a noite escura, desconheço outra além do "Noite Escura" de São João da Cruz, que quase ninguém se interessa por ler, justamente por não ensinar facilidades.

- Depois de quebrar o iceberg das pessoas, você fará o que com elas?

- Mas elas continuarão com essa fé infantil e...?

- Mas eu gosto de crianças.

- Mas...mas...e?

- Elízabeth! Cuide de você. Salve-se. Deixe o resto comigo.

Então cá estou eu, salvando a mim mesma. Ou pelo menos tentando.

quinta-feira, 19 de março de 2009

A viuvinha que veio de Belém e os bichos do circo

Noto que me afastei de novo das origens do blogue, ou seja, sou uma viúva triste. Triste? Que nada! Ando super de bem com a vida. O curioso é que não devia. Noto todo mundo tão estressado e preocupado à minha volta, que começo a ficar preocupada mas é comigo. Pelo andar da carruagem, eu deveria estar em pânico. Daqui a pouco vou entrar em pânico por não estar em pânico. O circo está pegando fogo, a coisa está mais ou menos assim, vou tentar resumir:

O leão está solto nas ruas. Por enquanto ele ainda não fez nada, mas seu caminhar é notadamente ostensivo.

Os macacos estão entrando e saindo dos ônibus, incomodando os passageiros. Alguns já aprenderam a se virar na grande cidade, e estão fazendo macacadas em troco de amendoins. Alguns ganham amendoins e não fazem as macadadas, até isso já aprenderam.

As girafas estão passeando tranquilamente na marginal Tietê. Parando o trânsito, claro.

O elefante está subindo as escadas rolantes do metrô. Tentando.

As araras azuis estão posando para fotos.

Os papagaios não param de dar palpites sobre a situação nacional.

O hipopótamo se banha tranquilamente no chafariz da Praça da Sé. As crianças de rua estão adorando.

O jacaré está de barriga para cima no rio Tamanduateí. Relaxadamente.

Os bombeiros, claro, estão em pânico com essa situação toda.

- Estamos tomando todas as providências cabíveis, está tudo sob controle.

Não há frase que assuste mais a população do que esta: está tudo sob controle.

E a Bete está calma...

Sei não, é caso pra internação...

Mas já que estou calma, vai aí uma quadrinha de roda, que fala justamente de viúvas.

A VIUVINHA

Faz-se uma roda com uma menina – a viuvinha - no centro.

(1)

Você, Senhora viúva, diga com quem quer casar
Se é com o Conde da Beira, ou com o Senhor General

(2)

Eu não quero estes homens
Porque não pertencem a mim
Eu sou uma pobre viúva
Ninguém tem pena de mim

(3)

Sou uma viuvinha que venho de Belém
E que quero me casar, mas não acho com quem
E que quero me casar, mas não acho com quem
Então casa comigo, que te quero bem
Então casa comigo, que te quero bem

(1) As meninas da roda cantam
(2) A de dentro responde
(3) As de fora cantam
A menina escolhida vai para dentro da roda e se recomeça o brinquedo

Espero que você goste desta cantiga de roda que fala de uma pobre viúva. E eu estou de saída, vou tentar tirar uma foto ao lado do leão enquanto ele ainda está manso, porque a coisa pode piorar, pode piorar...

 

quinta-feira, 12 de março de 2009

A tangerina roxa...FINAL

 12 - FINAL
Então chegou a hora de virmos embora, e eu temia muito a despedida, achei que teria uma nova crise de choro convulso. Sabia que não veria Rowena nunca mais, e gostaria de ter as palavras corretas de agradecimento, palavras que não me vinham.

- Se as palavras não vêm, Betinha, é porque não há necessidade delas. Você acha mesmo que Rowena precisa de palavras? Era Lidia falando. Era manhã bem cedo, e nós duas repassávamos tudo o que tínhamos vivenciado ali.

Tínhamos visto os tais seres vindos do espaço? Como os concebíamos? A resposta era não. Mas tínhamos caminhado na senda do sobrenatural, ou do invisível, ou do inexplicável? Sim, a resposta era sim.

Estávamos nisso quando a menina Liliana entrou, e disse que Rowena me chamava para a despedida.

Inexplicavelmente, eu que sou tão agitada e ansiosa, fui ao encontro dela tranquilamente.

Conversamos por quase uma hora. Divertida, Rowena relembrou minha chegada, atarantada, sem saber qual o enigma e qual a atitude a ser tomada para entrar lá dentro, eu tinha até me esquecido daquilo. Mas ela me disse que houvera uma grande torcida, da parte de todos, para que eu fizesse a coisa certa, vocês devem se lembrar que eu idealizei quase que sem querer um ato de partilha, com as frutas. Ela me disse que com aquela simples atitude eu recebera deles o Sim para ficar.

Não pude deixar de pensar que na certa deveria existir uma câmera por ali junto ao portão, e no momento exato em que pensei isso cruzei meu olhar com Rowena, que me devolveu um sorriso misterioso.

Chegava a hora do abraço. Nos levantamos, mas ela disse que tinha duas informações muitíssimo importantes.

- Você é capaz de decorar estas palavras? perguntou ela, e recitou algo num idioma desconhecido. Não era difícil, aprendi na hora. Você não irá esquecer, jamais, promete? insistiu ela. Tente relembrar de tempos em tempos, é muito importante. Se alguém, em algum momento de sua vida, vier até você e lhe disser estas palavras, refugie-se, com todos aqueles que lhe são caros, desde que os consiga convencer, neste lugar aqui - e apontou um lugar no mapa mundi, e deu-me o nome do lugar, e para satisfazer em parte a curiosidade de vocês, posso dizer que é no Uruguay.

- A segunda informação, disse ela, é a seguinte: nunca deixe, em hipótese alguma, que gravem em qualquer parte de seu corpo um código de barras. É muito importante isso, entendeu? Em hipótese alguma.

O recado está dado leitores. Mas procurem transcender. Nada é para ser levado ao pé da letra.

Chegou finalmente a hora do abraço, e eu não chorei, embora tenha sido um momento de fortíssima emoção. O abraço durou longo tempo, e eu não queria ser a primeira a separá-lo. Por mim eu estaria abraçada à ela até hoje. Mas ela o separou, finalmente.

Ela não foi comigo até a porta, ficou em pé no centro da sala. Quando eu me virei para vê-la pela última vez, notei que sua roupa era rosa e lilás, com bordados em roxo, mas quando entrei...eu...eu poderia jurar que era amarelo alaranjada...

Na viagem de volta Lidia e eu não tínhamos outro assunto. Mesmo esgotadas, não parávamos de falar. Até que finalmente desembarcamos, e chegou o nosso momento de nos separarmos. Lidia iria para sua cidade de trem, eu, que morava mais perto dali, de taxi, então eu a levei até a estação. No nosso abraço de despedida, Lidia disse: sempre lembrarei com emoção do momento de minha chegada, daquelas lindas parreiras carregadas de uvas...e entrou no trem, sem que me desse tempo de falar, como? parreiras, uvas? mas eram pés de tangerinas...

Aquele foi o último momento em que estive com Lidia, daquela viagem em diante aconteceram inúmeros fatos, muitas dificuldades e desencontros, de ambos os lados, que nos separaram até hoje. Nunca consegui dizer para ela que onde ela viu uvas roxas, eu vi tangerinas amarelas...Qual de nós estaria certa?...

De recordação eu tenho um vidro com perfume que nunca usei. Também nunca usei o vestido alaranjado, com franjas douradas e desenhos em batik. Pretendo usá-los em um momento que me seja especial, como a formatura do meu filho.

Ou talvez no lançamento da versão ampliada desta história, caso algum abençoado editor maluco numa sorte dessas que às vezes acontece passe por aqui, e resolva pagar para ver. Milagres acontecem, esta história que acabo de contar é uma prova disso.

Para
Atilio Avancini
Lídia Zózima Sampaio
Rosa Koshiba e
Rolf Gelewski - em memória



 

terça-feira, 10 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

 11.
À noite depois do jantar, Rowena me perguntou se eu não estaria cansada demais para continuar os trabalhos com ela. Eu que pagaria qualquer preço para ficar perto dela, disse sem precisar mentir que não estava cansada, de forma nenhuma. Então ela me levou a uma enorme sala oval, lindamente revestida com um fofo tapete alaranjado, e com paredes guarnecidas de lindas cortinas de uma bela cor creme com enfeites dourados, e só. O ambiente estava deliciosamente perfumado, e Lidia já estava lá, ela nos conduziria nos exercícios de aquecimento, pois ali teríamos uma aula de dança.

Soube que o trabalho de Lidia tinha sido pintar uma sala de aula de crianças, e a cor escolhida por ela vocês já sabem, violeta, claro. Ela pintou fadinhas, faunos, gnomos, árvores, flores e pássaros em fundo lilás e violeta, as fadinhas e as borboletas com asinhas transparentes, as libélulas e os passarinhos parecendo querer sair das paredes, um capricho.




 - Vocês já entenderam a cura das cores, iniciou Rowena, estávamos sentadas em roda no chão, haviam outras mulheres. Eu já conversei com cada uma de vocês, e soube como lhes foi prazeroso passarem o dia envolvidas com atividades relacionadas às suas cores pessoais. Mas vocês não podem ficar para sempre aqui em contato com girassóis amarelos nos campos ensolarados, ou manuseando o rubi das beterrabas ou o vermelho dos tomates indefinidamente, vocês deverão voltar para suas ocupações.

Mas eu posso ensiná-las a levar as suas cores para sempre consigo, dentro de vocês, deixem-me ensiná-las a dançar a sua cor.

E foi assim que dançamos, sob o seu comando, ao som de músicas místicas e intrigantes como de Claude Debussy, Camile Saint-Saens e Erik Satie, entrando pela madrugada à dentro, naquela belíssima sala perfumada, cada uma vestindo a sua cor pessoal, eu usava uma bela túnica longa de seda dourada, fria, deslizante, sensual, extremamente agradável ao tato.

Um dia talvez consiga contar a vocês como foi essa aula, como dançamos, que sons ouvimos, que sensações tivemos, que tipo de ensinamentos recebemos. Só posso adiantar que foram ensinamentos para a vida toda. Seria como uma releitura das atividades do corte dos girassóis, e das beterrabas, e das verduras, desenvolvida com a magia da dança, numa outra percepção sensorial, numa outra oitava. Reinterpretando as atividades do dia, dançamos nossa colheita interior.




Foi Rowena quem me ensinou que a vida pode ser dançada. Que todas as nossas atividades do dia a dia, mesmo as mais simples, podem ser vividas com harmonia, como se houvesse um inaudível fundo musical, inaudivel talvez para os outros. Ela me ensinou a ouvir música dentro de mim.

Quando finalizamos aquela sessão, já próximo do amanhecer, ela pediu que nos acomodássemos, pois ela entoaria um canto, e que muitas de nós ali saberíamos reconhecer, ao final dele, qual era a nossa habilidade a ser desenvolvida. Sobre esse canto eu nada posso falar, apenas que ao término dele eu tinha certeza de que eu teria de escrever esta história, e outras, muitas outras, enfim, que eu teria de começar a escrever.


Continua...




 

segunda-feira, 9 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

10.

Na manhã seguinte, bem cedo, lá fui eu para os campos de girassóis, que já estavam no ponto exato da colheita, e era muito bonito de se ver. Olhar para aquele amarelo me fazia bem, lembrei que Rowena recomendara que eu deveria ingerir alimentos amarelos, pois eu sofria de disfunções que me prejudicavam seriamente o intelecto. Segundo ela, a cor amarela me recuperaria. Também disse que curaria o meu olhar, não entendi na hora o que ela quis dizer.

Conheci minha equipe de trabalho: uma mulher de quarenta anos, seu marido e sua filha jovem, que como eu tinham vindo de fora e três rapazes da região. O marido daquela mulher era o chefe da nossa equipe, e ele me passou o material de trabalho, e me pediu que apenas os seguisse e observasse como eles trabalhavam. Eles faziam aquele trabalho com total economia de tempo e movimento, porém ordenada e suavemente. Tratava-se apenas de cortar cuidadosamente as flores e deixá-las no chão . Atrás de nós vinha outra equipe dando continuidade ao processo. Depois de algum tempo observando, o chefe que se chamava Hermes me disse que eu poderia começar. Era um trabalho muito agradável, os jovens brincavam muito, faziam todo tipo de piadas, todos ríamos muito. E as flores amarelas iam ficando, como um bonito rastro, no chão. Avançávamos no mesmo sentido do sol. Imaginei como aquela cena deveria ser linda vista de cima, era como se nós estivéssemos desenhando uma linha amarela sob o sol...Deus devia estar gostando muito de nos contemplar, pensei.

Hermes usava um equipamento de fone de ouvido, e se comunicava com pessoas que operavam em carrinhos, veículos de apoio. Atrás de nós vinham as equipes que recolhiam as flores, as folhas e os restos, indo tudo para estocagem. Era uma linha de montagem doméstica mas bem ordenada. Então, deslocando-se entre aquelas posições, trafegando em faixas largas de terra entre certas distâncias, ficavam os carrinhos de apoio. Bem mais adiante eu conseguia ver outras equipes de colheita, o campo era grande, e existiam outras culturas: beterrabas, cenouras, tomates e vários tipos de legumes e verduras.

Sabem o que havia, em pequenos reservatórios com torneirinhas, afixados em suportes, entre certas distâncias? Filtro solar.

Na hora do almoço um daqueles carros trouxe o alimento, e os ajudantes montaram uma tenda restaurante com uma facilidade de espantar, e nos unimos às outras equipes e comemos ali mesmo no campo, às mesas e cadeiras especialmente montadas. A comida era farta e deliciosa. Trouxeram grandes quantidades de frutas, e pipas contendo água e vinho. Aqueles carrinhos podiam ser chamados a qualquer momento pelo chefe da equipe para trazerem, além de água e frutas, uma tenda banheiro, que era montada com enorme rapidez e facilidade. Aquela tenda banheiro era funcionalíssima, aquilo sim era coisa de outro planeta.

No momento exato em que o sol desapareceu no horizonte, Hermes deu por encerrados os trabalhos. Fora um dia de trabalho tão agradável, que eu não vira o tempo passar. Senti uma incrivel vontade de ajoelhar e fazer uma prece, e o fiz. Todos meus colegas de equipe me imitaram.

Rowena me alertara de que o objetivo da plantação em si não era tão somente a produção do alimento, nesse caso eles teriam utilizado eficientes meios mecânicos de plantio e colheita. O trabalho visava muito mais a interatividade da pessoa com a terra e o alimento. Um trabalho de doação, de amor, e portanto terapêutico.

Continua...


 

domingo, 8 de março de 2009

Plim, plim!

 Use filtro solar.

Não, não é o Pedro Bial falando, se bem que ele é um gato, e seria bem-vindo aqui. Também não é o texto da moça lá, cujo nome não me lembro, aqui neste blogue é ponto de honra não se fazer consultas no google.

Sou eu mesma advertindo. Serviço de utilidade pública da nossa padaria.

O sol está de rachar mamona, está de quebrar coco ao meio, de fritar ovo no asfalto, o que você está esperando para passar filtro solar?

Sim, eu sei, não estou falando com a mulherada, as mulheres em sua maioria se cuidam. Mesmo as que não o fazem, concordam com o que estou falando.

Estou falando mesmo é com os machões.

Machão que é machão não usa filtro solar. Aliás, machão que é machão não faz uma porção de coisas. Machão não faz limpeza de pele. Não usa creme hidratante. Não apara os pelos das axilas. Corrigir a linha das sobrancelhas, nem pensar. Machão usa aquela taturana enorme, aquela duas-em-uma horrenda no meio da testa. O máximo a que machão se permite é cortar os pelinhos do nariz, e olhe lá.

Quando acampávamos em Ilhabela, eu levava minha receita infalível contra picadas de borrachudos: uma barrinha de sabão de coco. Você passa a barrinha no corpo ligeiramente molhado, e deixa a espuma secar. Pronto! Você está livre de picadas de borrachudos. Todas as mulheres usavam. Menos os machões, claro. No final do dia, estávamos lisinhas. Eles, empolados, irritados de tanto se coçar.

Vida de machão não é fácil...

Eh! Meninada! Usem filtro solar!

Além de passar no rosto, você deve passar também no pescoço, braços, e as mulheres que usam decote, devem proteger também o colo.

Não se esqueçam de proteger as crianças.

E segue a nossa programação normal, vem mais capítulo de mexericas fresquinhas por aí. Agora falta pouco, logo logo eu me livro para sempre dessa história, e creio que vocês também.





 

sábado, 7 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

 9.
Não foi na mesma sala da recepção, foi numa espécie de sala de consulta médica e laboratório.

Hoje teremos uma extensa tarde de trabalho ela me disse, com sua voz agradavelmente rouca. E apanhou uma caixinha parecendo um pequeno rádio portátil, que tinha ligado a ele, por um fio, uma espécie de pequeno microfone, algo parecido com um leitor de código de barras. Rowena pegou aquele artefato e o deslizou numa parte do meu braço. Naquela caixinha, numa pequena tela, apareceram coisas grafadas, que ela ia lendo, atenta e silenciosa, escritas nos mesmos caracteres que eu vira na placa, na entrada da propriedade.

Perguntei à ela que informações eram aquelas, ao que ela me respondeu que eram meus códigos genéticos, e que por ali ela podia saber de toda a minha vida biológica, e também de meus antepassados.

Então Rowena falou comigo longamente, sobre as heranças geneticas que recebi. Descobri que muitas das minhas características consideradas por mim como defeitos de caráter eram na verdade distorções genéticas, coisas que não poderiam ser modificadas tão facilmente assim como eu pensara até então.

- Mas você veio ao lugar certo, ela disse. Você irá receber a chave para trabalhar todas essas distorções.Quando perguntei que técnicas seriam, já imaginando algum sofisticado exercício de mentalização, ela me disse que seria através do trabalho braçal.



 A consulta se estendeu pela tarde à dentro, e teve várias etapas: ela analisou meus cabelos, minha pele, minha lingua, minhas unhas. Longa e demoradamente. E ia me esclarecendo, me fornecendo informações ao longo da análise. Pediu que eu me deitasse, colocou cristais em várias partes do meu corpo, analisou depois aquelas pedras, lentamente, sem pressa. E sempre me reportando informações sobre minha saúde. Até hoje me utilizo das informações sobre o funcionamento do meu organismo obtidas ali. Também me ensinou ténicas de respiração que exercito até hoje.

Já era quase noite. Finalizando aquela sessão, ela me deu um invólucro plástico, lacrado, contendo uma sonda. Disse que me dirigisse a um reservado que havia ali, e que fizesse uso do sanitário com ajuda da sonda. Era um banheiro igual a todos os outros, exceto pelo vaso sanitário que era de metal, e continha também uns mecanismos sobre os quais ela me ensinara. Seguindo suas instruções, eu coloquei uma das extremidades da sonda num orifício apropriado, numa caixinha de vidro afixada na parede, contendo um líquido esverdeado. A outra extremidade introduzi onde devido, e baixei uma alavanca que havia na caixinha. Não havia papel higiênico, eu pressionei um botão no vaso, à minha direita, liberando do seu interior jatos de água morna, e na sequência, ar quente.

À saída, vi Rowena lendo informações numa folha de papel que saía de uma pequena impressora. Eram informações obtidas à partir do material que tinha sido coletado no vaso. Naqueles mesmos caracteres que eu já tinha visto.

Então ela me levou a uma sala anexa, toda recoberta por armários envidraçados, cheios de vidros com tinturas. Retirou dali alguns vidros, e me ensinou como usar aqueles remédios. Disse que eles iriam regularizar minhas funções vitais, principalmente do coração, rins e fígado, que estavam em desarmonia. Deu um vidro para que eu trouxesse para o meu filho. Recomendou que não deixasse de fazer os exercicios respiratórios.

Recomendou tambem que eu tomasse muito da água daquele lugar, pois era parte essencial do meu tratamento. E finalmente disse que o meu tratamento central seria trabalhar nos campos, na colheita nos campos de girassóis.




Continua...


 

sexta-feira, 6 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

 8.
- Lindo demais esse tom laranja do vestido de Rowena, você não acha Lidia? eu perguntava no dia seguinte, ao café da manha. Laranja? Betinha, você está bem? Rowena está com um vestido lilás e rosa!

- Como?

Não tivemos tempo de continuar essa conversa, Liliana veio chamar Lidia para uma reunião com Rowena. Quanto a mim, ela me disse que fosse à sala de costuras, ajudar na confecção de roupas para crianças.

Era uma agradável sala de trabalho, e lá estavam seis mulheres, todas da mesma idade que eu. Uma me disse que eu deveria costurar arremates coloridos, viéses, que haviam em sete cores diferentes, em branquinhos lençóis de bebês, tarefa simples.

O silêncio era total, porém era um silêncio confortável, quebrado apenas pelo canto dos pássaros e as brincadeiras das crianças ao longe. Senti saudades do meu filhinho, será que ele estava bem? Uma mulher ao meu lado, sem desviar o olhar da costura me perguntou: você tem filhos? Eu disse que sim, e soube imediatamente que todas ali tínhamos filhos da mesmíssima idade. Então pelo resto da manhã nós trabalhamos conversando sobre assuntos de mamães: mamadeiras, papinhas, doencinhas, cuidados, conselhos úteis, um encanto de conversa. Quando vieram nos chamar para o almoço, notamos que o serviço tinha rendido que era uma beleza, e que nós estávamos alegres e confraternizadas.

Preciso lhes contar algo: eu tive o meu filho num clima muito conturbado, brigas, discussões de família de todo tipo, sofri humilhações, agressões e discriminações no trabalho, por conta disso não tive nem ânimo de preparar o enxoval. Já chegava próximo o momento dele nascer e não havia uma única pecinha de roupa. Foi minha mãe, que retirou umas economias da poupança e iniciou o meu enxoval, e também Lidia, que me deu várias peças de presente, daí em diante eu me animei.

Agradeço imensamente a Deus a oportunidade que tive de resgatar isso em mim. Ao lado daquelas delicadas mamães pude me religar com aquele elo partido...pude, de certa forma, costurar o lençol do meu próprio bebê, atividade que em minha atordoada gravidez não pude nem pensar em realizar.

Após o almoço eu soube que à tarde seria a minha vez de ter uma reunião com Rowena.

Continua...






quarta-feira, 4 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação

7.
Se você me acompanhou até aqui na curiosidade de ler uma história intergalática, com seres vestidos de roupas prateadas e anteninhas na cabeça, se comunicando pela força do pensamento, com luzinhas brilhando e coisas assim, creio que nesta altura de minha narrativa já estará enormemente decepcionado, e eu não o culpo. Culpo as nossas crenças, os nossos códigos, as nossas idéias pré concebidas. Eu também me fazia essas mesmas perguntas: cadê os ETs? Rowena demonstrava ser uma mulher de elevada sensibilidade, mas eu já ouvira falar de pessoas assim. Aquelas duas mulheres que desapareceram poderiam ter sido fruto da minha imaginação, eu estava muito emocionada e cansada naquele momento, e mesmo as belezas da construção e decoração, a suavidade das pessoas, a sensação de calma no ar, tudo isso era muito bom mas nada sobrenatural. - Você não acha, Lidia? Estávamos jantando.

Disseram-nos que estavam com poucos moradores, e que muitos faziam suas refeições em suas próprias acomodações. Estávamos sozinhas na sala de refeições, um lugar muito agradável, havia uma linda árvore plantada no meio do salão. Disseram que para não derrubá-la, construiram o salão à sua volta. Sentadas de onde estávamos, podíamos ver o céu pela abertura feita para a árvore. O ambiente era repousante, perfumado, as luzes eram deliciosamente indiretas, e havia uma música ao fundo; procurando descobrimos uma menina tocando um violão, sentada numas almofadas na semi obscuridade. Chamava-se Liliana e antes que me perguntem posso afirmar que ela parecia ser uma adolescente deste planeta como outra qualquer.

Assim se passou o meu primeiro dia lá dentro. Após termos conversado muito eu e Lidia, e mais tarde Rowena e Liliana, que se juntaram a nós, fomos dormir. Eu tinha esperança de ter sonhos mirabolantes, reveladores, fantásticos, mas não tive sonho algum, estava tão cansada que creio ter adormecido antes de a minha cabeça encostar no travesseiro.

Continua...

Nossos comerciais, por favor



Atendendo a pedidos do Tatá, vamos dar uma pausa para os comerciais, para o povo poder se atualizar. Sempre lembrando, uma vez que vocês são distraídos como bons blogueiros, que na postagem abaixo desta saiu um capítulo fresquinho das mexericas, faça o esforço sobre-humano de baixar a barra de rolagem e conferir...

Elias me passou um e-mail com mais depoimentos de leitores da bíblia. No meio ele colocou alguns anúncios, porque o pessoal não perde tempo. Se você nunca a leu, infelizmente não entenderá alguns. Mas você que leu vai rir, eu gostei muito, dá uma olhada:

Muito boa pra insônia - Rei Assuero

Achei! – Sacerdote Hulquias (essa é difícil...)

Prefiro no sabor Bacon - João do Apocalipse

Atenção partos, medos, elamitas, naturais da Mesopotâmia, Judéia, Capadocia, Ponto e Asia, Frigia, Panfilia, imediações da Líbia e Cirene, temos todas as versões, vários tipos de mídias! - nas barraquinhas de camelôs, no dia de Pentecostes

Não, não acabei de ler, esqueci em Troade, alguém viu minha capa? - Apóstolo Paulo

Pergaminho da prosperidade, acompanha tabelas de conversão monetária em grego e hebraico – Judas Iscariotes

Faria qualquer sacrifício por ela - Abraão

Temos a inédita versão Tábua I de Moisés (restaurada) consulte nossos preços - outra barraquinha de camelô

Também tenho cópias piratas especiais para samaritanos - Outro anúncio de Judas Iscariotes

FAÇO DE GRAÇA, versão para download AQUI!!! – São Tomé

Tomé, me ensina a salvar em pdf pra jogar na rede - Judas Macabeu

Acabo de fechar contrato com El Cid Moreira, vem novidade por aí... – Rei Davi

Não foi bem isso que eu quis dizer, me aguardem...- J Cristo

Cânon? o que é isso?! (Ai, Jesus, me abana...) - Javeh

A tangerina roxa...continuação

 6.
Aquela sala parecia ser a sede daquele lugar. Eu estava muito atenta a tudo, porque queria ver algo que não fosse deste mundo, mas tudo o que vi foi um lugar agradavelmente mobiliado, com belos quadros, vasos de cerâmica e tapetes coloridos enfeitando tudo, e plantas, muitas plantas e flores. Se eu tivesse conhecimento de plantas, teria notado que eram espécimes diferentes, mas eu estava tão preocupada em ver coisas diferentes que não notei que as plantas eram diferentes. Foi Lidia quem notou, e de fato ela tinha razão, depois quando conversamos longamente na viagem de volta, concluímos que jamais tínhamos visto ou ouvido falar daquelas flores.

Rowena indicou-me um lugar, frente a uma mesa. Atrás dela havia uma janela que dava para um agradável jardim, e eu vi crianças brincando ali. Era inacreditável o som de canto de pássaros que se ouvia daquela sala. Ela começou a me fazer perguntas, aquelas perguntas básicas que aparecem em qualquer ficha, do tipo nome completo, endereço, idade, estado civil, coisas desse tipo. Ela demonstrava não ter a mínima pressa, toda ela estava à minha disposição, e essa sua disposição acabou com o último restinho de ansiedade que ainda existia em mim. Notei que esse sentimento era comum a todos ali, havia em todos uma entrega total no trabalho que estivessem realizando, demonstrando ser aquele momento a única coisa realmente importante, parecendo não existir mais nada com que se preocupar.

Ela continuou perguntando mais: do meu filho, de meus parentes, de meu trabalho, do que eu gostava, do que eu detestava, e eu me vi recebendo atenção exclusiva creio que pela primeira vez em minha vida.

Quando houve um momento de silêncio, ela se reclinou suavemente em sua cadeira e me disse: fale-me de seus rancores guardados, Bete. Está tão aparente assim, que tenho rancores guardados? pensei. Deviam ser três horas da tarde.

Quando eu terminei de falar era crepúsculo, e salvo uma ou outra pergunta de melhor compreensão, ela não fez interrupção em momento algum. Quando terminei e já pensando em pedir desculpas por ter falado tanto, ela como que lendo meu pensamento disse:

- Não fique chateada. Minha intenção era realmente lhe ouvir. Você não tem tido muito com quem conversar, não é mesmo?...

Ela se levantou e eu a imitei, ficamos em pé na agradável sala, quando então ela me perguntou se eu já tinha tido, em algum momento de minha vida, a sensação de que saia fora do corpo durante o sono, e eu respondi que sim, e muitas vezes. Ela me pediu detalhes e eu dei, foi a primeira vez que me vi falando a alguém desse fato que me era tão peculiar, que me acontecia com tanta frequência.

Também perguntou se eu não me sentia às vezes confusa, principalmente quando estava só em um ambiente, se eu não ficava de repente assustada pensando se estava de fato ali. Eu nunca tinha comentado aquilo com ninguém, até porque nem saberia encontrar as palavras, e quem se interessaria também?...sim, disse, tenho essa sensação desde muito pequena. Eu disse que nesses momentos tinha por hábito cantarolar uma música para me convencer de que estava de fato presente no ambiente.

- Sensação de ausência, ela falou.

Ela se assentou numa confortável poltrona, a roda de sua saia se espalhou macia e delicadamente sobre o tapete laranja, e então me falou muitas coisas de mim que por dentro eu sentia, mas não sabia expressar. Inclusive ela falou isso mesmo, que eu não sabia articular argumentos, que eu tinha enorme dificuldade em me expressar e que portanto desistia de falar, principalmente de falar de mim, e que com isso atraia com muita facilidade cansativas amigas falantes, que abusavam dos meus ouvidos, não era assim? E que atraia conversas fúteis, irritantes problemas alheios, amizades frívolas, pessoas egoístas nada preocupadas comigo e somente com elas mesmas, que se acercavam de mim apenas porque eu era um ouvido aberto. Que como eu não sabia impor meus limites, minha vida era um território aberto que todos invadiam.

-Sim, eu disse, sim! Com exceção de Lidia, eu me encontro profundamente cansada de conviver com todos ao meu redor, muitas vezes me sinto totalmente só no planeta, sentindo que devo ter nascido no lugar errado...

Rowena então se levantou, me estendeu a mão e eu me levantei também, e ela me deu um longo e demorado abraço, como nunca eu tinha jamais recebido de ninguém, e eu me senti deliciosamente amparada e confortada como jamais me sentira até ali.

Foi então que chorei. Convulsivamente. Como nunca em toda a minha vida eu tinha chorado.

Continua...

 

terça-feira, 3 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação



5.
Uma vez atravessado o portão, tornei a me encontrar com uma antiga amiga, a dona insegurança.Uma sensação de medo e apreensão muito minha conhecida se apresentou, mas devo dizer que, naquele lugar, aquela foi a última vez. Dali em diante, todos os acontecimentos e situações que me sobrevieram chegaram a mim com suavidade, como deixas de peça de teatro, todos se superpondo com leveza. No exato momento em que minha mente articulou um "e agora?", vi três mulheres vindo em minha direção.

Eram todas da mesma idade que eu, e cada uma diferente da outra na cor, na altura, no biotipo. Traziam lindos vestidos longos, e todas tinham os cabelos artísticamente penteados. Meu olhar imediatamente se fascinou pelo vestido amarelo alaranjado de uma delas, lembrava a cor das tangerinas, com raiados de cor âmbar. Um vestido gracioso, de cintura alta, levemente pregueado, vaporoso, solto, a cor era maravilhosa. Quando levantei o olhar, não vi mais as outras mulheres, embora não houvesse lugar algum onde elas pudessem estar, estávamos em espaço aberto.

No exato momento em que puxei o fôlego para dizer eu sou a Bete, na mesma deixa, como se fosse a minha dubladora, ela disse: você é a Bete, eu sei, eu sou Rowena. Foi então que eu olhei para ela com mais atenção e a constatação foi muito interessante: ela era parecidíssima comigo. Tinha a minha altura, meu tipo físico, mesma cor de pele e o mesmo cabelo, e parecia-se comigo também nas feições do rosto. Só que ela parecia ser feliz.

No exato momento em que ia perguntar por Lídia, ela me disse com suavidade: Lidia chegou bem, e está esperando por você no pavilhão, e me indicou o caminho. Mas antes venha comigo que eu vou lhe instalar, e levou-me a um chalé.

Era uma pequena e delicada casinha, o telhado eu já tinha visto parecido em alguns documentários de televisão, eram daqueles que captam a energia solar. Coisa rara, pensei, mas nada extraterrestre. A casinha era quadrada, e seu interior, apesar do calor intenso de fora, era agradavelmente refrigerado, embora não houvesse aparelho de refrigeração algum. Notei na entrada que a casinha era aparentemente montada numa base redonda, escura, e novamente Rowena se adiantou à minha dúvida:

- A casa gira para melhor se posicionar ante a luz e o calor do sol.

- Você encontrará roupas no armário, caso queira, ela disse. Depois de ver sua amiga, aguardo você na recepção, você saberá encontrá-la. De fato existiam placas indicativas por toda parte.

Tudo muito bonito e organizado, mas nada interestelar, comentei com minha amiga. Tomávamos suco gelado, que nos foram servidos em belíssimas taças, eu nem diria taças, eram como vasos de cristal colorido, belamente trabalhados, leves, levíssimos.

- Que belo vestido ela disse! Eu vestia um longo de seda laranja com franjas douradas bordado de miçangas, ao qual simplesmente não conseguira resistir, e usava perfumes também, e sabem de onde? de torneirinhas, que haviam na pia do banheiro, torneirinhas com perfumes!! Lidia também estava super perfumada, e usava um lindo vestido lilás e roxo com aplicações de veludo e pedrarias, e nos sentíamos ótimas.

Continua...



 

segunda-feira, 2 de março de 2009

Pausa para o comercial

 
Faz de conta que os caras resolvem lançar a bíblia. Faz de conta que eles contratam a Bete & Elias Solutions para cuidar da publicidade. Faz de conta que após quebrarmos a cabeça por dias e dias, sai algo assim:

Leia A Bíblia, o surpreendente lançamento do milênio. Uma história de conquistas, sexo, incesto, poligamia, traição, e sangue, muito sangue! E mais, muito mais. Quando você pensa que o herói morre no final, há uma virada surpreendente. Ao final, você será arrebatado, você irá ao céu!
SINOPSE:
O autor, que é também o personagem principal, sentindo um vazio existencial, resolve criar dois personagens, um casal, para ocupar um belo palco, especialmente montado para esse fim. Tudo caminha muito bem até que aparece uma serpente sugerindo novos rumos para essa história, rumos que são imediatamente aceitos pelo casal. O autor intervém, modifica algumas regras, e promete uma solução definitiva, que irá surpreender o leitor da metade do livro em diante. A serpente não desiste e contra ataca no final. Desfecho arrebatador.

Com personagens que vão desde velhacos como Jacó, a covardes como Gideão e Pedro, passando pelo corajoso Josué ao empreendedor e mulherengo Rei Salomão, até chegar ao honestíssimo Paulo, dentre tantos, isso sem falar em belíssimas mulheres, A Bíblia irá prender você, irá fazer para sempre a sua cabeça.

Veja alguns depoimentos:
"Uma história longa mas com final feliz." Matusalém

"Me impactou de tal maneira que eu caí do cavalo." Apóstolo Paulo

"Me distraiu tanto na leitura que eu desci no ponto errado no deserto." Eunuco da Rainha

"Eu aposto minha cabeça como você vai gostar." São João Batista

"Você precisa ver pra crer!" São Tomé

"É meu livro de cabeceira." Rabino Fariseu

"Essa história não acaba aqui..." J Cristo

"Um livro irado, do começo ao fim." Javeh

domingo, 1 de março de 2009

A tangerina roxa...continuação



4.

O
mapa era perfeito, até mesmo para mim que sou péssima com mapas. Dava para entender até de ponta cabeça, não tive dificuldade alguma em chegar. Havia uma bandeira que constava no mapa, lá estava ela, num alto mastro, uma bandeira totalmente branca, que apesar da terra vermelha do lugar estava inacreditavelmente limpa. Numa discreta placa no chão estava escrito: são bem-vindos todos os homens e mulheres de boa vontade, em vários idiomas, sendo que um dos últimos eram caracteres que eu jamais tinha visto.

A entrada da comunidade ficava numa pequena elevação, para chegar lá tive de subir uns dez minutos por um caminho de terra bem aplainado, ladeado por grama verde bem cuidada, e muitas árvores frutíferas, senti cheiro de limões e tangerinas. O local era cercado por tela de galinheiro das mais comuns, aquilo já me irritou - tela de galinheiro? onde está a tecnologia extra terrestre?

Aquela tela se perdia na vegetação à minha esquerda e à minha direita. Na minha frente, um portão de madeira também dos mais simples, encaixado em esquadrias de metal. Nenhum tipo de tranca ou fechadura.

- Agora...agora eu faço o que, exatamente? Cadê o enigma? Cadê o vigia da torre para me fazer a perguntinha?

Naquele tempo não existia telefone celular, então eu nem sabia se minha amiga estava realmente lá dentro. Situação das mais absurdas, pensei. O portão era baixo, que eu poderia transpor com facilidade, mas eu nem sonhava em fazer isso. Se há um enigma, há um enigma, pensei, mas muito pior do que não saber a resposta é não saber qual a pergunta.

E sentei no chão, desconsolada, já pensando em começar a traçar meu plano de retirada, e lembrando desolada que não tinha visto nenhum hotel ou restaurante pelas redondezas. Teria de voltar mesmo a seco - cansada e faminta.

Cansada? Faminta? é isso, pensei. Lidia me ensinou algumas técnicas de relaxamento e meditaçao. Vai ver que os tais seres só me permitirão entrar aqui zen e relaxada. Coloquei-me na tal posição de lótus e tentei relaxar.

Impossível. Eu não conseguia relaxar nem nos templos onde Lidia me levava, com musiquinha indiana e cheirinho de incenso, não seria ali que eu conseguiria, cansada, faminta e me sentindo trapaceada e vexada.

E se eu tomasse um banho? Tinha visto um riachinho torto há um quilômetro da subida, e se eu voltasse lá e...não, estou exausta, não aguento dar mais um único passo.

Então a natureza me mostrou as árvores, e eu vi que havia tangerinas em profusão. Com a ajuda de uma vara, eu consegui descer uma boa porção delas.

Desalentada, chupei as tangerinas, que estavam ótimas, e aquele sabor doce foi me revigorando, a ponto de me fazer olhar melhor à minha volta e observar o céu, os passarinhos, a suavidade do lugar, a ponto de sentir o cansaço ir passando. Chupei mais uma tangerina, dessa vez dando-me conta de que jamais tinha provado fruta tão doce. Resolvi colher mais, para levar para a Lidia - pensando bem, vou colher várias, para levar para todos, essas frutas estão muito maduras, vão estragar aqui, pensei.

Estava entretida nessa colheita, me sentindo mesmo uma criança a cutucar os frutos com a vara, e dando até risada da minha dificuldade em descê-las, feliz como uma criança, quando ouvi um delicado clique.

O portão se abrira.



Continua...

A tangerina roxa...continuação



3.

Foram um dia e uma noite de ônibus mais uma caminhada à pé. Eu sonhava com um banho, um prato de comida e descanso, e procurava me concentrar nisso para afastar meu nervosismo - o que exatamente me aguardava ali, eu me perguntava. Mas não havia ninguém para me responder, porque eu viajava sem a Lidia, sim, isso mesmo. Foi na rodoviária que ela me deu a magnífica notícia: não poderíamos chegar juntas, porque haveria uma interatividade na chegada, e uma não poderia ver de que forma a outra seria admitida. Na entrada nos seria proposto um enigma, só entrando quem o acertasse. E isso era individual.

E eu deixei o meu bebezinho por essa maluquice, pensei, já entrando em desespero.

Pânico na boca do estômago. Lidinha do céu, vamos juntas, chegando lá você caminha na frente, eu sigo mais atrás...

- Betinha! Você concordou em vir, lembre-se disso. As regras são essas, não podemos trapacear com eles. Vamos fazer assim: eu pego o ônibus, vou na frente. O próximo sai daqui a uma hora. Então você tem tempo de pensar se quer mesmo ir. E me passou o mapa, e entrou no ônibus, e me deixou na rodoviária com cara de idiota.

- E se eu não desvendar o enigma? perguntei quando ela já estava instalada no ônibus.

- Você não entra Betinha, você não entra...

E lá se foi minha amiga, me deixando na plataforma, completamente aparvalhada.

Continua...