quinta-feira, 26 de junho de 2008

Café com pão

Será que vocês agüentam mais uma historinha de Praça da Sé? E antes que venham dizer que estou a compor uma trilogia sobre, vou logo falando que acho trilogia coisa de gente fresca, e o que é pior, sem assunto. O sujeito ao invés de partir para novos temas fica fazendo variações em cima de um mesmo, e usa essa palavra modernosa aí para se justificar. Tudo bem que Bach e outros grandes da música erudita o faziam, eram as tais variações, mas eles podiam. O resto é frescura e falta de imaginação do povo. Tem uns que chamam a isso “revisitar” antigos temas, e essa palavra revisitar também acho frescura, lá em casa isso tem um nome, é chover no molhado.

Dito isso, vamos a ela; a verdade é que quero contá-la porque posso acabar esquecendo, comigo isso de andar com caderneta para anotar possíveis temas não funciona, porque tenho uma letra monstruosa, que depois não consigo decifrar. A história não se passou comigo, mas com meu irmão, o Eli, quatro anos mais velho do que eu.

Na década de setenta, meu irmão passou a integrar um grupinho incipiente naquela época, chamado Jovens da Verdade. Eram rapazes e moças, que com suas bíblias, um violão, uma caixa de som, um ou dois microfones e muita boa vontade, andavam por aí a falar de Jesus nas ruas e praças da cidade. A sede da missão ficava na Rua das Carmelitas, bem próximo da Sé. Embora eu não tenha feito parte do JV – eles eram conhecidos assim – também cheguei a fazer parte de cultos dessa natureza, com jovens da igreja que eu freqüentava, chamávamos a isso de “cultos ao ar livre”. Fazíamos um culto voltado aos transeuntes, onde anunciávamos o evangelho, convidávamos pessoas a aceitar Jesus, cantávamos hinos. Uma vez terminado o trabalho, nos dividíamos em grupos menores, e passávamos a orar por aqueles que quisessem receber oração.

A juventude cristã de hoje, embora possua em suas igrejas equipamentos de som ultra sofisticados, prefere não sair mais às ruas. Eles gostam de ficar nos seus belos templos, fazendo encontrões, louvorzões, acampadentros, tardes da pizza, noites do sorvete e exibições de dança. Mas se isso os faz felizes, e não incomoda as suas consciências, eu não tenho nada com isso e muito menos a minha história, que poderia ter seguido perfeitamente sem esse aparte. Continuemos.

Então eles estavam lá, na Praça da Sé, numa noite fria, cantando, orando, falando de Jesus aos passantes.

Quando seus olhos fecharem
Pra grande viagem
Eu fui pra Jesus, eu fui pra Jesus...
Quando você me procurar
E não mais me encontrar
Eu fui pra Jesus, eu fui pra Jesus...
Quando seus olhos chorarem de saudade
Eu fui pra Jesus
Vivo esta vida esperando pelo dia
De ir com Cristo morar
Sim ir morar
Junto a Jesus...


Nesse meio tempo um sujeito que já era por lá conhecido, com cara de pouquíssimos amigos, o cabo de um revolver ostensivamente exibido à cinta, fala no ouvido do meu irmão, que estava tocando violão:

- Eu não quero cantoria na MINHA praça, e eu vou matar você para dar exemplo!

- Tudo bem, disse o meu irmão. Mas você espera a gente acabar o culto? O sujeito disse que esperava.

Quando seus olhos fecharem
Pra grande viagem
Será que você irá pra Jesus?
Quando eu lhe procurar
E não mais lhe encontrar
Será que você
Irá pra Jesus?
O Senhor padeceu lá na cruz
Só para lhe salvar
Peça a Deus o perdão de seus erros
E receba Jesus
Sim, a Jesus
O Salvador
O Salvador


Terminado o culto, o sujeito arrastou meu irmão para um bar que ainda existe ali, você pode conferir na foto. Pediu duas cachaças. Vou deixar você beber, antes de morrer, disse.

- Pode ser café, perguntou meu irmão? É que eu não bebo...

Vieram a cachaça e o café, colocados sobre o balcão por um assustado rapaz, que devia conhecer a má fama do tal sujeito.

- Já que você vai me matar, disse meu irmão, posso antes falar de Jesus pra você?

- Seja rápido, disse o sujeito, tirando o revólver das cintas e colocando-o acintosamente sobre o balcão. Porque em seguida você vai morrer.

Então meu irmão falou de Jesus pra ele.

“Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente...”

E terminou perguntando ao sujeito se ele não queria aceitar Jesus como seu Salvador. Então o sujeito disse:

- Não, minha vida não tem mais jeito. Sou um caso perdido, um assassino, já perdi a conta de quantas pessoas matei. Eu ia realmente matar você para servir de exemplo. Vamos fazer assim: eu não vou aceitar o seu Jesus. Mas vou permitir que daqui para a frente você e seus amigos preguem aqui. Escutaram, pessoal? disse ele elevando a voz aos presentes. Esse sujeito aqui mais o seu grupo, tem a MINHA PERMISSÃO para pregar na Praça da Sé a hora que quiser, e sob a minha proteção. E recolocou o revólver para dentro das cintas.

E foi assim que meu irmão não morreu. E ele, e os rapazes e moças dos Jovens da Verdade continuaram a fazer seus cultos ali, muitas vezes, mas muitas vezes mesmo.

 

sábado, 21 de junho de 2008

O batismo



Foi então que o meu filho de vinte anos, tocado pelas notícias de maremotos, terremotos e catástrofes de todo o tipo, e menos contrito do que preocupado com um provável apocalipse, resolveu que era tempo de pôr em dia sua vida espiritual, dar uma zerada básica nos pecados, professar sua fé, enfim, essas coisas que se costuma fazer motivado mais pelo medo do que pela fé cristã em si. Mas já é um começo.

- Que bom filhinho. Sempre é tempo.

- É, eu estou pensando em freqüentar a igreja batista de nome tal.

Só me faltava essa, pensei com os botões do meu blaiser. Já não me bastava ter um filho corintiano, e agora um corintiano batistão? E isso sem falar que ele já foi batizado por mim quando pequeno, na igreja metodista. Mas dei a resposta ética protocolar:

- Muito bom filho, é uma boa igreja. Mas como sou mãe: - só que não podia ser uma igreja um pouquinho menos...Bete! atalhou meu filho já zangado. Não me venha com suas sugestões. Eu escolhi a batista e pronto. E eu preciso que você me acorde todos os domingos bem cedo.

Pronto. Lá estava eu no meio da fita. Porquê será que tudo acaba sobrando para mim? Não seria o caso de ele lembrar que domingo pela manhã é meu único momento de descanso? Mas enfim, vale tudo para colocar mais um pecador no caminho do bem. Foi então que comecei a levantar aos domingos bem cedo, tonta de sono, para fazer café e acordar o futuro cristão.

O curso de batismo teria a duração de seis meses. Seis meses?

- Filho, na bíblia tem a história de um sujeito, alto funcionário de uma rainha, que recebeu os rudimentos da fé cristã no dorso de um camelo, contada por um tal de Filipe, e que foi batizado ali mesmo, creio que com água de alguma pipa. Porque você sabe, não sabe, que no deserto não há tanta água assim?... E tinha também um cara chamado João Batista que...Pam! meu filho batendo a porta e indo para o curso. De seis meses.

E eu fiquei lavando a louça e pensando em João Batista. Um sujeito simples, que vestia um modelo básico especial para desertos – peles de animais. E que de cajado em punho, e com um único bordão: Arrependei-vos, cambada de!... ia batizando quem viesse. Onde foi que essa prática tão simples passou de um único bordão para seis meses de curso intensivo? Detalhe: o curso seria aos domingos pela manhã e quartas à noite.

Mas meu filho que é inteligente, ao cabo de umas três semanas capitulou. Seis meses de curso, Bete? É muita coisa não é? E você não imagina as perguntas idiotas que fazem, chego a ter pena do pastor. Uma mulher perguntou se o cachorrinho dela iria para o céu! Num curso de batismo, num momento de reflexão profunda sobre as nossas vidas, olha o tipo de pergunta!

E não foi mais. E a igreja batista perdeu a oportunidade de ter um bom cristão em suas fileiras.

Se eu fosse pastora, portanto desocupada, talvez ficasse na entrada do Metrô Sé, com uma garrafa de água na mão: Arrependam-se e sejam batizados! Olha que idéia bacana acabo de ter. Fulano, você! É, você mesmo. Você não gostaria de se arrepender agora de seus pecados e ser batizado? - Mas eu...eu...não sei...eu não entendo nada dessas coisas de igreja... - Filho, quem falou em igreja, eu falei em arrependimento e perdão. Creia em Deus, creia em Jesus Cristo, arrependa-se de seus erros, prometa dar o seu melhor daqui pra frente, e deixe que o Espírito Santo faça o resto em sua vida. E eu batizaria arrependidos nas escadarias do metrô, que lindo...

Gosto da letra de Milton Nascimento que diz: todo artista tem de ir onde o povo está. Creio que pastores deveriam ir atrás dos pecadores em becos, ruelas, esquinas e mesas de bar, ao invés de ficarem ministrando cursos em salas acarpetadas. E se eles fazem tanta questão de batizar pessoas, torneiras em bares e padarias e garrafas de água mineral não iriam faltar.

Mas eu não sou pastora, portanto nem um pouco preocupada com a salvação dos outros, e me desculpem se essa fala escandaliza. Tenho uma empresa para tocar, a Elizabeth & Filhos Ltda. Bem limitada. Se eu conseguir dar boa conta destas duas vidas ao Pai, já terei cumprido a minha missão, e já está de bom tamanho para mim.

- Filhinho, se você faz mesmo questão de ser batizado nas águas, poderíamos ir a uma represa, eu mesma posso batizar você, sou sua mãe, tenho autoridade para isso e...

- Bete! Se é uma coisa assim tão simples, eu não preciso que ninguém me batize. Se é simples assim, no momento em que pensei em me batizar, já fui tocado pela mão de Deus, aliás, já tenho sentido o toque da mão dEle em minha vida, desde aquele momento. Pronto! Já estou batizado, já me sinto batizado.

Eu não disse a vocês que ele era inteligente?

Foi então que os rumos da vida espiritual do meu filho começaram a ser delineados. Tenho fé que o Espírito Santo que iniciou essa obra, que deu esse sopro de mudança no coração dele, irá completá-la a bom termo. Deus não precisa de água nem de cursos para agir na vida de ninguém.

E ele continua corintiano, mas eu tenho fé que a obra vai ser completa.

terça-feira, 17 de junho de 2008

pão-de-bete

Depois do acidente do dedão (está melhorando) tive uma crise de preguiça criativa, então para encher lingüiça justificar o título do blog, segue uma receita de pão, fácil de fazer:

PÃO DOCE DE LEITE CONDENSADO
1 lata de leite condensado
½ lata (medida) de óleo
1 pitadinha de sal
1 lata de água quente
4 tabletes de fermento de pão (60 g)
4 ovos inteiros
Bater tudo no liquidificador

Peneirar 1 quilo de farinha de trigo, juntar a mistura que foi batida e amassar bem. Descansar por 1 hora, deixando dobrar de volume. Faça tranças.

Recheie com: coco, ou goiabada, ou maçãs, uva passas...

Pincele com gema de ovo. Leve para assar.

Que foi? Acharam que eu não sabia fazer pão? Que era firula?

Pois taí!




quarta-feira, 11 de junho de 2008

A cura

 “Alguns dias depois, Jesus voltou para a cidade de Cafarnaum, e logo se espalhou a notícia de que ele estava em casa. Muitas pessoas foram até lá, e ajuntou-se tanta gente, que não havia lugar nem mesmo do lado de fora, perto da porta. Enquanto Jesus estava anunciando a mensagem, trouxeram um paralítico. Ele estava sendo carregado por quatro homens, mas, por causa de toda aquela gente, eles não puderam levá-lo até perto de Jesus. Então fizeram um buraco no telhado da casa, em cima do lugar onde Jesus estava, e pela abertura desceram o doente deitado na sua cama. Jesus viu que eles tinham fé e disse ao paralítico:

- Meu filho, os seus pecados estão perdoados.” Do Evangelho segundo São Marcos.

Depois dos meus trinta anos, e após o nascimento do meu filho, desenvolvi uma série de doenças, ou sintomas, como queiram. Já contei algumas dessas queixas por
aqui. E aqui. Mas não perca seu tempo lendo isso. Também não pretendo cansar vocês com a lista de meus achaques, porque é grande. Para relatar apenas um deles, porque é o mais agudo, eu tenho uma febre inexplicável, baixa, que me ataca em média uns cinco ou seis dias no mês, por aí.

Por conta desses sintomas, freqüentei um sem número de consultórios e clínicas, e fiz outro tanto de exames, até porque era necessário investigar a febre. De teste de AIDS para cima, fiz todos. Resultado, nenhum. Como isso tudo já levou de mim bem uns 20 anos, e eu não morri, concluo que não é nada grave. Espero.

A febre e outros sintomas levavam toda a minha energia vital, e as solicitações do meu trabalho eram muitas, eu precisava fazer frente a elas, precisava correr com a vida, precisava sarar. Como os médicos não deram conta, procurei tratamento alternativo, e agora tome fôlego, porque a lista é grande:

O primeiro de todos foi a homeopatia. Daí fui para o naturismo, que me levou à iridologia, misturado com os tais florais de Bach. Nada. Fitoterápicos de todo tipo, conheci uma naturista famosa que me atulhou de chás e plantas. Massagens quiropráticas, essas são boas. Imensamente caras. Para consertar a coluna apelei também para a RPG – reeducação postural geral. Caríssima. Aí descambei para o lado espiritual: centros espíritas, templos de umbanda, no plural mesmo, fui a vários, leitura de búzios e tarô, cura prânica, peguei uma carona em progressão neurolinguística, ufologia – visitei um sujeito argentino que jurava que fazia contatos imediatos. Não satisfeita em procurar alguém que me jogasse as cartas, quis eu mesma aprender a ler o tarô, então fiz alguns cursos, li uma grande quantidade de livros, por conta desses livros acabei freqüentando uma sociedade teosófica que me roubou um tempo insano. Fora o dinheiro, dos livros, cursos e palestras: angeologia, viagem astral, visualização criativa, psicologia transpessoal, nem lembro mais o que é isso. Também me tornei Rosacruz, outro investimento de tempo e dinheiro. Uma leve passagem pela Grande Fraternidade Branca. Freqüentei um templo chinês onde recebi um batismo de fogo, uma cerimônia imensamente prazerosa e interessante. Regressão a vidas passadas e mapa astral, fiz também. Pagava em dólares.

A lista seria maior, mas vou parar por aqui para não cansar, se é que já não cansei. Finalizando tudo isso, também procurei os tais pastores evangélicos, esses me exorcizaram, gritaram coisas ao meu ouvido, um deles até me fez desmaiar, creio que de cansaço.

E tudo continuava igual: dor no corpo, cansaço imenso, febre, uma ardência nos olhos que oftalmologista nenhum diagnosticava. Sofria de não sei quê, essa era a verdade.

- Será que você não sofre de fadiga crônica? Eu ouvia perguntas dessas e de todos os tipos, meus amigos se desesperavam tentando me ajudar. Mas ao final de um certo tempo, eles se cansaram de mim, fiquei só com minhas febres e dores.

Foi quando fiquei desempregada, sem o convênio médico e sem dinheiro algum, que parei com a maratona.

E foi lendo o trecho acima, certa noite, que disse: Jesus, eu desisto de continuar a procurar ajuda. Toma conta desse lixo que é a minha saúde, toma conta desta paralítica, amém.

Gostaria de ter um final feliz para contar para vocês, mas não tenho não. Ou quase. Alguns sintomas desapareceram, esse dos olhos que relatei, a sinusite crônica também se foi, ela era terrível. Mas outros ficaram, estão comigo até hoje, o mais persistente são as febres, manchas no rosto, dor crônica em vários pontos da coluna. E outros mais que estou com preguiça de contar.

Quando converso com Jesus, no final da noite, na hora do balanço do dia, eu às vezes apresento a conta dessa queixa toda, e peço a ele que olhe para esta paralítica. Uma olhadinha só, Jesus. Um toquezinho da sua mão, eu peço. Jesus então me apresenta a conta dos meus pecados perdoados, e pergunta se não está bom pra mim. Claro que está, Mestre. Saber-me perdoada, é a maior das minhas certezas e de minhas alegrias, é o centro da minha fé. Mas eu também queria carregar a cama das minhas doenças nas costas. Como o paralítico da história, o que você curou.

Então Jesus me fala que o pecado que eu cometo diariamente, minuto a minuto, é o que está sendo mais difícil para Ele – é o pecado de não gostar de mim mesma. Elizabeth, ele me fala – Jesus me chama de Elizabeth, à inglesa, com assento no i – eu preciso perdoar você todas as horas do dia, porque você não se ama o mesmo tanto de horas do dia! Faça assim, Ele me diz: Tente um minuto de trégua nessa falta de amor próprio. Um minuto gostando de você. É o tempo que eu preciso para agir.

Quer dizer então, Mestre, que a cura para os meus males está em minhas mãos?

Mas nesse estágio das minhas orações, eu geralmente pego no sono.


segunda-feira, 9 de junho de 2008

A inspiração


 
Onde você busca inspiração para criar seus quadros? Era a repórter pra lá de inexperiente que perguntava, nervoso microfone em punho, demonstrando ter saído recentemente de uma faculdade, onde devia ter aprendido muito pouco, a julgar pela pergunta destituída de conteúdo, coisa comum, aliás, no jornalismo de hoje em dia.

Responde o pintor: - Eu busco inspiração em minha família, em minha mulher e em meus filhos. Preciso pintar bons quadros, para que as pessoas gostem, e comprem. Quando isso acontece, eu ganho dinheiro, e com esse dinheiro posso sustentar aqueles que amo.

A mim só faltou levantar do sofá da sala e aplaudir. Pela primeira vez eu via um artista dar uma resposta comum, uma resposta de gente. Porquê será que eles preferem nos passar a impressão de que vivem no Olimpo, acima de nossas comezinhas preocupações com a conta de luz, de telefone, do dentista? Ou então, porque será que os artistas se apresentam a nós como enviados dos deuses?

“Eu procuro passar para as pessoas....” , ou “Eu sinto a necessidade de dizer para as pessoas...” ou, “Nesse quadro eu quis traduzir o sentimento de...”.

Não seria mais verdadeiro dizer: minha profissão é ser artista, então eu a procuro fazer bem feita? Procuro fazer coisas belas para que as pessoas gostem?

Mas eu queria descer mais uma oitava nessa linha de pensamento, me acompanhe: E nós, os mortais, os que não sabemos tocar Mozart, pintar quadros, representar, dançar ou fazer ginástica olímpica? Nós os gerentes comerciais, secretários, bancários, operadores de telemarketing ou professores? Nós os que desempenhamos tarefas muitas vezes enfadonhas, repetitivas, desgastantes, frustrantes, estressantes, buscamos inspiração em quem ou em quê?

Os artistas e intelectuais, vivem nos fazendo acreditar que eles sim, têm um motivo para viver, um significado para as suas vidas. E que nós somos apenas a massa, o resto. Simples coaduvantes, às vezes nem isso.

De onde vem a sua inspiração para montar uma trabalhosa planilha de cálculos? Aquela, que o seu chefe irá encher de defeitos?

Eu tenho me inspirado na resposta simples do pintor, que aliás é um pintor renomado, e vou ainda mais fundo: Minha inspiração sou eu mesma, minha inspiração é minha própria vida. Procuro fazer bem feito o meu trabalho porque ele leva a minha marca, porque é o meu texto neste teatro da vida. Sim, é um trabalho quase anônimo. Não vou ganhar aumento de salário, nem mesmo elogio, não me recordo se alguma vez recebi elogio em ambiente de trabalho. Mas aquilo que sai de minhas mãos sai bem feito, pelo menos eu me esforço, seja um complicado relatório ou um simples bilhete. Porque saiu de mim, do meu espaço. Porque é meu.

Já fui demitida algumas vezes. Me recordo de uma vez, onde me foi imposto aquele humilhante período de aviso prévio. Nessa situação, o funcionário trabalha envergonhado, como que evitando a presença dos colegas. Ele é um nada, uma carta fora do baralho, mas precisa continuar ali, ensinando serviço, atendendo solicitações e até levando broncas. Comigo não foi diferente, eu trabalhava no Departamento Financeiro de uma empresa. Quando lá cheguei, o setor que me destinaram estava uma total bagunça. Eu fiz o que sabia fazer e sei até hoje – coloquei a bagunça em ordem. Então o empregador constatou que tudo ficara tão bom, tão perfeito, que ele podia perfeitamente me dispensar, e colocar uma pessoa para continuar aquele trabalho, ganhando a metade do que eu ganhava. E o fez. E a mim coube ensinar o serviço àquela pessoa.

O rapazinho meu substituto, não sabia sequer ligar um aparelho de computador, então eu dediquei um dia desse aviso prévio apenas para ensinar essas noções a ele, o básico. Como ele não sabia fazer nenhum tipo de redação comercial, eu criei vários modelos de cartas de diferentes situações, e salvei todas para ele na área de trabalho. E passei o resto desse período ao lado dele, como uma esforçada professora. Eu fiz tudo isso não porque sou um amor de criatura, mas porque tenho amor ao trabalho.  Porque amo o espaço que meus dois pés ocupam no chão deste planeta.

No meu último dia lá dentro, após ter ensinado tudo o que devia, arquivado tudo o que tinha para ser arquivado, apareceu sobre minha mesa um documento, que não precisava sequer ser arquivado, era uma cópia de uma fatura que já houvera sido paga, o processo já estava até em arquivo morto. Mas eu me vi subindo as escadas, indo ao setor de arquivo morto, puxando a caixa correspondente, abrindo, localizando o processo, arquivando aquele inútil papelzinho – minha última demanda ali dentro.

Eu estava sentada no chão daquela sala, sozinha. E foi ali rodeada de caixas com papéis velhos, que eu agradeci a Deus, por tudo o que conseguira realizar naquele local. E parti, com a alma em paz, o meu trabalho tinha sido feito, e bem feito. Se não tinha sido reconhecido, era problema daqueles idiotas, não meu.
 

sexta-feira, 6 de junho de 2008

A Elizabeth

Numa noite dessas, eu estava num bairro desconhecido para mim, à noitinha, após o trabalho, tinha ido fazer algo por ali, quando começou a cair uma forte chuva. Seria difícil seguir em frente mesmo com o guarda-chuva, então resolvi me abrigar sob uma marquise, no que parecia ser um antigo cinema, onde devia funcionar uma casa de espetáculos obscura, uma casa noturna, um estabelecimento feio. À pequena distância vi uma moça vestida em trajes de moças que praticam seu ofício nas ruas. Continuei ali.

Subitamente senti um toque forte de dedos no meu ombro, e a fala: - Escuta aqui!

Então me virei. E a moça, ao me ver, disse: Ah! Desculpe senhora...

Ela devia ter imaginado que eu era uma concorrente, e talvez estivesse vindo tirar satisfação comigo, por estar no seu espaço, mas se acalmou quando viu meu rosto! Foi claro para ela que minha cara não era de concorrente. Aquilo até que me alegrou, pelo menos em parte, pois pensei - isso quer dizer que pelo menos de costas eu ainda estou bem...

A moça então se aproximou, e começou a puxar assunto.

- Chove não?

- Sim, terrívelmente, eu disse.

- Está assim desde ontem não é?

- Mas creio que logo irá parar, eu disse.

Senti que a moça queria estabelecer algum contato comigo, e que tentava de alguma forma iniciar uma conversa. Foi então que ela começou a falar da garotinha assassinada, a Isabella, o assunto que estava na ordem do dia.

- A senhora viu o caso da menina? Que coisa heim?

- Sim, um caso bárbaro eu disse.

Ela passou a comentar o caso, falando tudo aquilo que todos nós já sabíamos, manifestando seu horror. E eu concordava com tudo o que ela dizia, claro.

Foi então que ela disse que tinha uma filha, de mesma idade e com o mesmo nome da tal garotinha, e fez questão de me mostrar a foto.Uma menina bonitinha. Eu fiz os elogios de praxe, e fui sincera, a menina era mesmo engraçadinha.

- A senhora tem filhos? Adoro quando me fazem essa pergunta, meu filho é o orgulho da minha existência. Já fui logo procurando e mostrando a foto dele.

Duas mulheres numa esquina exibindo com orgulho as fotos de seus filhos...

- Bonito! Um moço, que bacana! Ele ajuda a senhora?

A velha questão da sobrevivência, pensei. Filhos com a obrigação de ajudar os pais, mas enfim, família é mesmo isso. Respondi:

- Sim, ele é trabalhador, graças a Deus. Muito honesto e responsável. Não menti.

- Que bom, eu vou fazer minha filha estudar bastante, para poder ter um bom emprego, e também me ajudar, é a vida não é?

Nó na minha garganta. Sim, é a vida, pensei.

- Claro, disse, você faz muito bem.

Silêncio por alguns instantes, e então ela pergunta: - E o pai dele?

Caramba. Então está mesmo escrito no meu rosto que sou uma mulher só? Ou foi isso ou foi a falta de aliança no meu dedo, é, pode ter sido isso.

Não vi razão para mentir:

- Pois é, o pai do meu filho era estrangeiro, com visto provisório no Brasil. Ele voltou para sua terra, e me deixou aqui com o filho pequeno, nunca mais o vi.

- E ele nunca lhe ajudou em nada?

- Não, nem uma moeda que fosse.

Silêncio.

- Pensando bem, vai ver que foi melhor assim, ela disse. Ele poderia ser um mau caráter, fazer a senhora e o seu filho sofrerem.

- Sim, nunca se sabe, respondi.

- E a senhora conseguiu sem ele não foi? Olha que filho bonito a senhora criou sozinha!

Nó em minha garganta novamente. Aquela moça estava a me confortar...

Ficamos então em silêncio, mas era um silêncio amigo, gostoso. De paz. E eu me dei conta que há muito tempo eu não tinha levado uma conversa tão mimosa como aquela. Desarmada. Duas mulheres muito diferentes e ao mesmo tempo muito iguais.

Finalmente aconteceu o que eu não queria, a chuva passou. Gostaria de ficar mais naquela companhia. Mas a hora se adiantava, eu precisava seguir. Foi quando me lembrei do mais importante:

- Qual é o seu nome, minha linda?

- Olha, eu não conto isso para ninguém, porque o nome que uso na rua é outro. Mas o meu nome verdadeiro é Elizabeth.

- O meu também, eu disse num sorriso e acenando adeus. Ela também acenou e sorriu para mim.

- Fique com Deus, Elizabeth!

- Pois vá a senhora também com Ele, dona Elizabeth!

Não perguntei qual o nome que ela usava na vida da rua, isso realmente não me interessou. Para mim ela é e sempre será El-isha-beth. Mulher consagrada à Deus.


 

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O grande prêmio



O nome verdadeiro do meu amigo Danny  é Clementino, mas se ele resolveu que teria um nome artístico, para mim está bom. Desejo dos meus amigos é coisa que eu levo muito a sério. Na verdade ele é de fato um artista, Danny é músico, e bom músico. Também é pastor, de uma igreja chamada Ministério da Comparação Bíblica. O nome é grande, mas a igreja é minúscula, tão minúscula que possui apenas dois membros, o próprio Danny, e meu irmão . Com essas duas atividades, ele não ganha absolutamente nada, meu amigo é muito pobre, mas um sujeito muito calmo, de excelente astral, um cristão, claro. Qualquer dia falo sobre eles, dá até um assunto bacana, mas hoje eu quero falar mesmo do que aconteceu com o Danny.

E foi assim: O meu amigo começou a perder a visão. Isso começou há uns cinco anos atrás, e o acontecimento foi deixando a ele e todos nós muito tristes e preocupados. Ele começou dizendo que via uma espécie de imagem centrada bem no meio do seu campo visual, ele se referia àquela imagem como se fosse um desses anões de jardim, tinha aquela forma. Os médicos davam voltas e voltas e não conseguiam chegar num diagnóstico. Com o passar do tempo, aquela mancha visual foi se ampliando cada vez mais, segundo ele. Ele já começava a apresentar aquele olho vidrado, morto, coisa triste de se ver. Até que um dia finalmente tudo se fechou, e ele não viu mais a luz do dia.

Nós os seus amigos, fazíamos aquilo que crentes fazem nessas situações: oração. O que mais podíamos fazer? Ele continuava procurando os médicos, e a situação não caminhava.

Mas um dia ele nos disse que recebera uma profecia, e essa profecia disse que ele seria curado, e isso seria em mesa de cirurgia. Acreditando firmemente nisso, ele continuava com as consultas e os exames.

Após essa longa peregrinação, finalmente a cirurgia foi marcada. No momento da cirurgia, o médico perguntou se ele gostaria de ser operado dos dois olhos no mesmo dia, ele imediatamente concordou. A cirurgia demorou horas.

E foi então que a profecia se cumpriu. O Danny saiu enxergando da mesa de cirurgia. Ele só precisou ficar uns três dias com aquele protetor de plástico, que deixa a pessoa parecendo um ET, e em seguida voltou à sua vida normal. E como tudo o que Deus faz é perfeito, ele passou a enxergar ainda melhor do que antes, pois antes ele usava óculos, hoje não usa mais.

Mas não vá embora porque esta história ainda não acabou. Na mesma semana da operação, ele ganhou um outro prêmio. Sabem aqueles títulos de capitalização que os gerentes dos bancos nos empurram? Dizendo que podemos ganhar um carro? Que nós nunca compramos porque achamos que isso jamais irá acontecer com a gente? Pois é, ele ganhou um carro, no primeiro prêmio.

Com o dinheiro da venda do carro, o meu amigo deu uma levantada boa na vidinha dele. Comprou um computador, uma boa impressora, e toda aquela parafernália de gravação de CDs e ainda um piano lindo que só falta falar, todo computadorizado. Com esse equipamento, ele tem ganho o seu dinheirinho fazendo gravações e CDs.

Mas espere, que a história ainda não acabou, volta! No quinto prêmio desse mesmo sorteio, ele também ganhou um aparelho de som.