quarta-feira, 30 de abril de 2008

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Resolvi pegar carona na falta de imaginação do povo do Orkut, e escrever um pouco daquilo que detesto. Para começar detesto a palavra detesto, razão pela qual não aderi a nenhuma dessas comunidades que começam com detesto. Isso não quer dizer, claro, que eu não deteste coisas. Mas eu pelo menos tento tirar esses rótulos da minha vida, pois nunca se sabe quando vamos descobrir um prazer nunca antes sonhado numa coisa que detestávamos.

E noto que já comecei falando demais. Nessa minha escrita prolixa, creio que preciso abrir um post para cada detesto, porque eu não consigo, simplesmente não consigo listar alguma coisa sem explicá-la, como se vocês precisassem de minhas explicações.

Mas como o blog é meu, e vocês são meus (04) amigos, vou fazer deste jeito mesmo, então aqui vai meu primeiro detesto.

Só que para falar dele, eu preciso voltar no túnel do tempo, e já estava demorando, você deve ter pensado. É porque este detesto remonta aos meus seis anos de idade, mais precisamente ao dia 1º de abril de 1964, meu primeiro dia de aula:

DETESTO DEVER DE CASA!!!!

Creio que escola boa é aquela que ensina o aluno dentro do horário letivo. Imagine você como não seria desgastante levar uma planilha de cálculos para fazer em casa à noite, embora eu saiba que muita gente o faz. Menos eu. Nunca em hipótese alguma levei trabalho para casa, e essa é uma das razões de eu nunca ter subido na vida, mas isso é assunto para outro post.

Porque o assunto é o dever de casa. Quando meu filho era pequeno, eu fazia a maior parte das lições dele, chegando a imitar a letrinha dele com capricho, e muitas vezes até cometendo erros, para não chamar a atenção da professora, como se aquelas tontas se deixassem chamar atenção por alguma coisa. Tudo isso para que ele brincasse e descansasse.

Trabalhos de escola também, fiz grande parte. Eu ficava uma arara quando a nota não vinha boa, um dia liguei para brigar, imaginem vocês que a professora deu nota seis num trabalho que fiz sobre Érico Veríssimo, e eu tinha caprichado tanto!

Os livros, aqueles livros chatos que as crianças são obrigadas a ler, eu contava para ele as histórias, um dia antes das provas. Não tenho nada contra a leitura. Tenho contra se obrigar crianças a ler livros. Um bom professor deveria estimular as crianças a ler apelando para a curiosidade delas, colocando ganchos que as levassem para dentro dos livros, coisas desse tipo, eu inventaria outras se fosse professora, e confesso que até tentei estimular a curiosidade do meu filho. Mas santo de casa não faz milagre. Então eu me vingava disso tudo facilitando ao máximo a vida curricular dele. O meu momento de glória era quando ele voltava com a nota, nunca inferior a 8, de um livro que ele não tinha lido e sim ouvido de mim.

A vida dele não iria mudar em nada se ele soubesse se a Capitu transou ou não com o Escobar, como não mudou a minha. Claro que dentro de tudo isso havia um mínimo de bom senso materno. Existem livros que não podem ser contados, a sacada do livro é a narrativa. Creio até que todos os livros devem ser lidos por essa ótica. Mas isso os professores teriam que ter dito a ele, duvido que o fizeram. Por isso quando foi o caso de Macunaíma e Vidas Secas, eu disse a ele que esses ele realmente precisava ler. Eram histórias que se perderiam totalmente numa simples narrativa.

Teve também o Auto da Barca do Inferno, era uma peça, não dava para ser contada, mas ele não conseguia ler de forma alguma. Então lemos juntos, eu ia representando, ele adorou, tirou uma nota excelente.

Eu o incentivei muito a gostar de leitura. No mínimo uma vez por mês, passávamos uma tarde na Livraria Cultura, naquelas mesinhas, escolhendo livros, e ele podia trazer para casa o que quisesse. O acervo dele é até grande. Ele leu tudo, mas não pegou o amor aos livros, não houve jeito. Ele sempre me viu lendo, e me deleitando com leituras, mas nem isso atraiu a atenção dele.

Então fica declinado aqui o meu primeiro detesto. Nunca que eu vou concordar que uma criança fique fazendo continhas em casa à noite, resolvendo equações de segundo grau e exercícios idiotas de gramática, numa hora em que ela deveria estar brincando e descansando. Ninguém me tira da cabeça que esse acúmulo de lição de casa está na razão direta da incompetência dos professores, em ensinar como se deve dentro da classe.

Se você vier dizer que com essa minha atitude, de fazer as lições do meu filho, eu estava criando um irresponsável, eu convido você a vir conhecer o Sibelius, orgulho-me do rapaz responsável e inteligente que tenho aqui em casa.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Noite feliz

 

Então um dia numa época de Festas, uma cliente do Banco de nome Violeta Gomez, espanhola, veio me desejar Feliz Natal. Também comentou que ela e sua família costumavam comemorá-lo dentro da melhor tradição espanhola. Naquele tempo eu ainda não tinha aprendido a controlar minha mania de dar respostas impensadas, e falei:

- Ah, que legal! Quer dizer que vocês costumam cantar aquelas músicas infames, xingando Nossa Senhora e o menino Jesus de tudo quanto é palavrão cabeludo?

A espanhola ficou ofendidíssima atrás de suas sobrancelhas fininhas e arqueadas:

- Cruzes, que horror! Não, de forma alguma! Nós rezamos um terço e fazemos várias outras rezas antes de nos sentarmos à mesa.

E eu saí de fininho, constatando que tinha dado um fora. Mas mesmo envergonhada não deixei de pensar o quão chata não deveria ser aquela ceia.

Mas tudo isso era culpa dos Velazco. Do colégio até a faculdade eu tive a companhia da Lílian, que era filha de mãe espanhola e pai francês. Aquele povo era desbocado pra caramba, não respeitavam nenhum tipo de tradição, e por conta disso as noites de natal na casa deles eram uma festa maravilhosa.

A comida de natal daquela gente era a mesma do ano todo, um pouquinho só mais melhorada, mas naquela casa comia-se bem o ano inteiro. Como em casa não se comemorava natal, era para lá que eu ia. Lá não tinha essa babaquice de esperar dar meia noite. A festa começava quando chegava o aguelito, o vovô Bertoldo, trazendo a bota de vinho. Chegando a bota, quero dizer, o aguelito, a festa começava.

Bota é um odre feito de pele de cabrito. Ergue-se o odre à altura da cabeça, e espirra-se o vinho para dentro da goela. O legal da bota é que não espirra tanto vinho assim, então não ficávamos bêbados, ficávamos alegres mesmo.

Sentados à mesa, a bota correndo de boca em boca, a cantoria começava:

- Vamonos, ahora a cagar-los! Era o aguelito. E começavam a primeira canção: Me cago em la virgem Mariiiiaaaa, me cago em la virgem Mariiiaaaaa, e a bota correndo e a cantoria só parava um pouco pra eles comerem.

Vamonos ahora! El niño Jesus! Começavam novamente, agora blasfemando em cima do coitadinho do menino Jesus.

Seis ou sete rodadas da bota depois, o cagado de la noche era o leite do menino Jesus. Nessa altura eu já estava vermelha de tanto rir.

O ponto máximo era me cago em los santos mistééééérios, seguido da santa hóstia, e finalmente, e para horror de uma jovem ex aluna da classe Estrela da Manhã de titia Amélia: Me cago no Espírito Saaaaanto!!!

Lílian e eu freqüentávamos a Igreja Pedras Vivas, ela estava pensando em se batizar, o que não chegou a fazer, mas o que quero dizer é que estávamos engajadas com as coisas santas. Mas aquele momento era uma trégua, por assim dizer, daquela santidade toda. E o absurdo contraste entre tudo o que aprendíamos na igreja e aquelas canções sujas, só conseguiam fazer a gente dar muita risada. Ela que era branquinha, ficava vermelha de tanto rir. E o pai dela, o Charles, justamente pra fazer piada de sua filha com mania de freqüentar igreja, botava mais lenha ainda na fogueira.

Meia noite vinha o champanhe, e no levantar das taças, aquele pessoal falava:

- Salud e... – não, não tenho coragem de botar a palavra aqui, mas é pesadíssima. E também não terei coragem de falar de outras gozações, que torna tudo o que falei aqui tremendamente inocente.

Quando li, anos mais tarde “Por quem os sinos dobram”, de Hemingway, eu ria e chorava ao mesmo tempo. Reencontrei ali todos os meus queridos e desbocados espanhóis. Não sei de onde veio a mania daquele povo de misturar coisas sagradas com obscenidades, nunca perguntei, até porque quando estava com eles, ou estava comendo e bebendo, ou cantando, ou dando risada.

Quando lá pelas tantas da madrugada, quase na manhã do dia seguinte, Lílian, Olívia e eu íamos dormir, a gente ainda tentava puxar um pai nosso, pra dar uma zeradinha nos pecados da noite. Mas não conseguíamos. Acabávamos dando a última gargalhada da noite. E caíamos no sono, com a alma em paz.

Então para terminar esta noite santa e abençoada com uma reflexão, quero convidar você a pensar se Jesus, o próprio (eu gosto desse tema não?) aparecesse ali, amigo de uma festa e de uma boca livre que era, e vendo aquela cantoria toda, você acha que:

a) Jesus ficaria horrorizado, e se retiraria ofendidíssimo ou
b) daria uma gostosa e sonora gargalhada, puxaria uma cadeira e diria vai passando essa bota aê ô!?

Buenas noches!





segunda-feira, 28 de abril de 2008

Coisa séria




Coisa Séria – Sérgio Pimenta e Guilherme Kerr
......................................
Olhe está em tuas mãos
Abrir teu coração
Para o que Deus falou
Responderes sim ou não
É tua decisão
Ao seu imenso amor
Preste muita atenção
Não é religião
E nem novas éticas
Falo ao teu coração
De uma direção
Pra uma vida autêntica
Falo de ser um cristão
Mas de viver pra Cristo
E não de fé semântica

Existiu há muito tempo atrás, um homem bom e sábio, que desde a mais tenra idade, procurou se auto conhecer a fundo, e de conhecer a verdade sobre tudo ao seu redor. Ele se auto intitulava um buscador da verdade. Então ele juntou-se a outros amigos, todos buscadores como ele, que passaram a estudar juntos. Como aquele país passava por revoluções internas, ele e seus amigos, viajaram para um país estrangeiro, muito distante dali. Lá ele fundou uma escola, que ele chamou de instituto para o desenvolvimento harmonioso do homem. Os seus alunos, para ficar com ele, precisavam abdicar de todas as ocupações, dar todo o seu dinheiro a ele, que se incumbiria de sustentá-los e ensiná-los.

Os ensinamentos incluíam leituras, conversas filosóficas, dança, música, representação, e muito mais. Isso porque a estada deles lá era em todo o tempo um exercício, pois que todas as atividades mesmo as mais corriqueiras, deveriam ser executadas com consciência e atenção.

O mestre lhes dava também, de tempos em tempos, e sem aviso, um exercício que consistia no seguinte: quando menos se esperava, ele lhes dizia: Pare! E todos tinham que congelar na posição em que estivessem, algo parecido com aquela brincadeira de estátua que antigamente faziam as crianças. Aí o aluno não poderia em hipótese alguma se mexer, e deveria então prestar atenção em todos os seus músculos, e tomar consciência por completo daquele movimento que estivera realizando, era um trabalho de conscientização do movimento corporal.

Mas aí também começou a trapaça. Sim, porque aquele mestre era extremamente ousado e exigente, e muitas vezes tinha dito pare quanto muitos estavam a segurar um copo quente, ou carregando um pesado fardo. O que aconteceu então, foi que muitos daqueles alunos passaram a tomar cuidado quando do manuseio de xícaras quentes, ou de pesos, procurando fazê-lo sempre longe do mestre, com medo do perigoso aviso de pare.

Mas um dia, o professor ordenou que todos fossem fazer seus exercícios matinais dentro de um canal, que estava naquele momento seco, mas do qual todos sabiam que as comportas de água seriam abertas dentro de instantes. Eles começaram a fazer os exercícios atemorizados, com medo da ordem de parar que poderia vir do mestre, E a ordem veio: Pare! E todos congelaram na posição de estátua. Mas as comportas foram abertas, e a água veio com toda a força. Ninguém sabia o que fazer. Alguns ainda resistiram na posição, mas logo em seguida se esforçaram para sair nadando dali.

Mas teve um aluno que não se moveu. Ele manteve a posição corporal. As águas o levantaram, e começaram a levá-lo, mas ele não se moveu. As águas aumentavam sua força, e já começavam a levá-lo com força para uma represa que havia logo à frente, e se ele não fizesse nada, com certeza morreria. Os alunos que estavam na margem olhavam apavorados para o professor, e não sabiam o que fazer. Mas o professor sabia. Quando a situação chegou no que parecia ser o seu ponto de máximo, o mestre saltou naquelas águas, e nadando forte e vigorosamente resgatou o aluno, e o colocou, ainda em posição de estátua, são e salvo na margem do canal.

Senti necessidade de contar esta história, que é real, para lembrar a mim mesma da necessidade de ser coerente com o mestre que eu quero seguir, mesmo que seja tão somente a voz do meu mestre interior. Se eu estiver no caminho correto e agindo da forma correta, a proteção virá. Ou não. Mas eu pelo menos morrerei sabendo que fui fiel às minhas convicções, e tendo a certeza de que não fiz trapaça.

Escrevi também, porque estou cansada de ver e ouvir a gritaria dos “cristãos” à minha volta. Não, não sou cristã. Não tenho coragem, melhor dizendo, cara de pau, para usar esse título, porque o acho elevado demais para alguém como eu, porque não o mereço. Para considerar-me cristã, eu deveria ser seguidora de Jesus de Nazaré em sua totalidade, e não num ou noutro preceito mais leve de se seguir, mais conveniente, mais palatável. Não vou me contentar em ser uma cristã de final de semana, de cara bonitinha, ao som da cantoria desafinada das igrejas evangélicas e praticando meus medos e minhas maldades, escondidinha. Não quero ser uma cristã, repetidora feito papagaio, de versículos bíblicos, versículos recortados totalmente fora de seu contexto, e ignorando levianamente aqueles que acho que não me dizem respeito, ou melhor, aqueles que não tenho vontade nenhuma de cumprir.

Não, não sou cristã. Tudo o que sou, é admiradora fiel de Jesus de Nazaré, e uma simpatizante de muitas de suas idéias.

Amar a Deus sobre todas as coisas e ao meu próximo como a mim mesma? Eu confesso que ainda não consegui tocar em nenhuma das pontas desse sagrado triângulo. Mas seguirei tentando. Quem sabe se no dia de minha morte, eu não receba o nome de cristã, já é um alento, já é um motivo para viver.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Um novo olhar



Meu filho tinha dez anos quando veio correndo, todo feliz, me contar a descoberta. Naquele tempo ele compartilhava suas felicidades e descobertas comigo. Bete, Bete (ele não me chama de mãe), eu descobri SOZINHO o significado do logotipo do Carrefour.

- Verdade filhinho? Sim, verdade, eu consegui ver um C, que legal, que demais! Só que tem uma coisa chata, continuava ele. Daqui para a frente eu nunca mais verei o logotipo do jeito que via antes.

E ele estava certo! Lembrei que nos anos 70, quando não havia Internet, circulava de mão em mão uma gravura, que era um jogo de sombras, em preto e branco. Diziam que era a figura de Jesus Cristo. Mas onde? Que Cristo, não vejo Cristo nenhum? Olha bem, aqui o nariz, aqui os olhos, veja bem, tem uma figura de Jesus aqui. E a gente olhava, e não via nada. Até que de repente, acontecia! Conseguia-se ver um rosto humano, que correspondia àquela figura de Cristo que trazemos em nossa imaginação. A estampa tinha até um título: Quem me vê, jamais me esquece. E era assim mesmo. Após vista a figura, não havia como ser “desvista”. Por isso entendi a colocação do meu garoto.

O meu amigo Lou andou estendendo melhor esse raciocínio lá na Gruta, ao falar dos nossos códigos de alfabeto, por isso não quero retomar este tema aqui, até porque não saberia falar melhor do que ele falou lá. Mas o pão que eu hoje quero assar fala sobre isso também, mas com um certo cansaço, ou nostalgia se quiserem, para fazer a frase ficar mais romântica.

Porque eu estou cansada dos meus códigos. Gostaria imensamente de me relacionar com as coisas, as pessoas, as situações e principalmente com Deus, isenta dos meus cansativos julgamentos, dos meus cansativos códigos, dos meus rótulos, referências, recorrências e fórmulas, principalmente fórmulas. Gostaria de ver “desvendo”. Gostaria de ouvir coisas pela primeira vez. Gostaria de me encantar com a mais corriqueira melodia como se ela fosse a música dos deuses. Gostaria de fazer uma oração que nunca fiz.

Quando meu filho era pequenino, um aninho mais ou menos, eu estava com ele ao colo enquanto cuidava do fogão. A água fervia. Ele olhou para a água fazendo aquelas borbulhas, e sorriu!

Eu queria olhar para a água fervendo e achar graça! Gostaria de ter olhos de primeira vez, olhos de encantamento.

Queria não ter um enorme índice de recorrências, para não ficar classificando cada pessoa, cada frase que ouço, cada informação, cada situação, queria me livrar dos escaninhos onde arquivo as coisas e as pessoas, e onde eu me arquivo também, tornando-me assim terrivelmente escrava da auto-imagem formatada que construí para mim.

Queria me livrar de frases do tipo: Ah, mas eu sou assim...Fulano? fulano eu conheço, ele é assim...Ah, eu tenho medo de...Não, não gosto de...Isso? Não, isso eu não faria jamais...

Gostaria de confiar menos em meus julgamentos internos, e depender mais da força do amor, que se eu deixar, irá com certeza me levar a navegar pelas águas certas, pois Deus é sempre um norte para aqueles que confiam inteiramente Nele.


E assim isenta, zerada, conhecer tudo de novo, passar a limpo situações, afetos e desafetos, a ponto de não saber mais quem é amigo e quem é inimigo, e de não saber mais se determinada situação é boa ou má. Apenas viver o momento, sem nenhum tipo de recorrência interna. Meus códigos não me fizeram mais feliz...

Imagino como deve ser delicioso comer chocolates pela primeira vez.




terça-feira, 22 de abril de 2008

A oraçãozinha

Ao contrário das crianças atuais, eu fui uma menina muito bobinha, tonta mesmo. Acreditava piamente nas bobagens que os adultos diziam. E os adultos do meu tempo, por sua vez, tinham a péssima mania de assustar as crianças. Depois quando a gente gasta uma fortuna em terapias, ninguém entende.

Voltávamos de um passeio à noitinha, de ônibus. Ao longe, havia uma queimada. Devia ser uma pequena queimada, mas aos olhos de uma criança, tudo é grande. Minha mãe comentou com minhas primas, essas já grandinhas: Olha, se continuar assim, vai pegar fogo em todo o bairro.

Foi então que por muitas e muitas noites, minha oração foi essa: Papai do céu, não deixe pegar fogo no bairro amém.

Não sei por quanto tempo fiz essa tola oração. Deve ter sido até eu substituí-la por essa outra:

Os adultos discutiam a novidade: todo cidadão teria que ter um documento chamado CIC, que mais tarde vim saber que era o tal cartão de identificação do contribuinte. Meu pai que era e é mais teimoso que uma mula, dizia que governo nenhum iria obrigá-lo a tirar o tal documento. Mas alguém, acho que uma tia, argumentou: mas daqui para a frente, ninguém poderá fazer nenhuma transação sem o tal documento. Vocês não estão tentando tirar a escritura da casa? Então, sem esse documento vocês não tiram, e sem escritura, podem perder a casa.

Aquilo me apavorou. Perder a casa? Corri para minha mãe. E ela era especialista naquela mania de mau gosto, que era a de assustar crianças, ou deixá-las sem maiores explicações. Distraída, ela falou assim:

- E daí? Nós iremos morar em tendas. Você não leu na bíblia que as pessoas antigamente moravam em tendas?

Jesus misericordioso, pensei eu. Nossa vida já era uma desgraça morando naquela casinha miserável, imagina então morarmos numa tenda, naquele bairro pavoroso, sem iluminação e enlameado. Então veio daí minha nova oração: Papai do céu, não deixe a gente morar em tendas amém. Devo ter feito essa prece por meses e meses.

No filme Forrest Gamp, a Jenny leva o Forrest ao quintal, numa plantação, ajoelham, e ela ora assim: Papai do céu, me transforme num passarinho, para eu sair voando daqui. Aquela oração de uma certa forma foi atendida; na seqüência do filme a gente vê a menina sendo levada para longe daquela errada situação familiar.

Ao longo de minha desgraçada infância, lembro-me de ter feito muitas orações pedindo socorro a papai do céu, muitas até meio parecidas com as da Jenny. Mas daquelas orações, papai do céu só ouviu mesmo aquelas onde eu pedi para não pegar fogo no bairro, e não irmos morar em tendas. As outras, ele não ouviu não.

No primeiro texto que escrevi, o ponto final era no parágrafo acima. Mas reli, e vi que se terminasse assim, seria apenas mais uma de minhas queixas, mais um lamento puro e simples, que faria você ficar com peninha de mim, mas que não acrescentaria nenhuma informação de ordem prática.

Então para transformar essa queixa numa informação de relevância, o meu conselho é: Esforce-se por praticar um olhar mais atento à sua volta. É impressionante a indiferença de certos adultos, a indiferença das famílias, dos vizinhos, e pasme, até das igrejas. Apesar de toda a informação existente, ainda é impressionante a indiferença para com as crianças, de um modo geral. Mas acredite, podem existir crueldades e até mesmo abusos, sendo cometidos contra crianças muito mais perto de você do que você pensa. A trajetória de Jenny, do filme Forrest Gump, dá um exemplo do que pode acontecer com essas vítimas, na grande maioria dos casos.


segunda-feira, 21 de abril de 2008

O professor

 “Imaginem um imenso pano de rocha. De quilômetros e quilômetros de altura e extensão. À cada mil anos, um passarinho vem, e afia o bico nessa rocha. Quando a rocha estiver totalmente desgastada, de tanto o passarinho nela afiar o seu bico, então terá se passado apenas um dia da eternidade.”

Se você achou que essa é mais uma daquelas frases que recebemos diariamente, naquelas animações bobas de power point, engana-se. Era o professor, numa aula de matemática, empolgado, falando-nos sobre o infinito.

Fui ao curso apenas para assistir à aula inaugural, não pretendia voltar, o curso era caro, eu tinha um filho ainda pequeno. Mas não consegui desistir. Fiquei por lá um bom tempo.

Aquilo não era uma aula, era um espetáculo. Aquele não era um simples professor de matemática, ele era a própria matemática, que vivia naquele empolgado professor uma nova e bela dimensão. Aprendia-se além de matemática história, artes, costumes, filosofia. E muito, muito mais.

Ele desenrolava o fio da matemática, desde os primórdios, lá com os primeiros filósofos que pensaram matematicamente, e vinha ensinando nessa mesma seqüência, trazendo o ensinamento até os dias de hoje, até os nossos contemporâneos matemáticos.

Ele mostrava que a matemática, no amanhecer da humanidade, se prestava a satisfazer à curiosidade humana, a questões existenciais. Foi um matemático curioso que notou que a mesma espiral que havia na ponta do seu dedo, estava no universo, na forma de uma constelação.

Depois a matemática se prestou à agricultura. Era preciso demarcar áreas de plantio, determinar o produto de uma colheita.

Veio a era fabril. A matemática se prestou, como se presta até hoje, a otimização dos recursos. Se eu vou cortar uma peça de pano para confeccionar camisas, pensa o fabricante, qual o número máximo de camisas que eu posso extrair dessa peça? Qual é o corte ideal?

Depois era preciso tomar atitudes: como o mercado se comportou ante minha ultima venda? Onde devo investir mais, e baseado em que dados? Nascia a estatística.



Então aquele professor mostrava que a matemática servia para outras coisas que não fossem somente para se passar num vestibular ou num concurso público. Que a matemática estava na vida. Ele levava para a sala de aula embalagens, latinhas de alimentos, frascos de iogurtes, absorventes higiênicos, bombons. E mostrava na lousa a matemática de todos esses objetos. Tentem quebrar esse bombom ele dizia. Ele foi desenhado para resistir aos maiores impactos. Alguma vez você comprou um desses bombons que estivesse quebrado?

Vocês sabem porque o frasco de iogurte tem essa curva, perguntava ele? É para proteger ao máximo o seu conteúdo do calor externo. E desenhava, e traçava, e mostrava o porque.

Vocês sabem porque todos os nuggets do Mac Donalds tem exatamente a mesma cor e textura? E mostrava a matemática daquele evento, e de tantos outros, provando que essa bela ciência estava muito mais perto do que pensávamos.

E todas as suas aulas eram ilustradas por fotos.

A foto da curva da barriga de uma mulher grávida: uma curva que dá o máximo de proteção ao conteúdo. É a mesma curva do ovo. Tente quebrar um ovo segurando-o no sentido da altura, com o polegar e o indicador, ele dizia. Tente.

Então esse modelo de curva e muitas outras que há na natureza inspiraram os matemáticos, e hoje qualquer engenheiro sabe usá-las para construir arcos e pontes.

A foto de um favo de mel. O formato hexagonal dos alvéolos permite no interior da colméia uma refrigeração de fazer inveja a qualquer aparelho de ar condicionado. Os raios de sol incidem hexagonalmente em qualquer superfície. Imaginem o telhado de uma casa. Se um matemático calcular essa incidência, e fixar no estuque no interior dessa casa caixas hexagonais emborcadas, nessas mesmas linhas, ele terá, nesse interior, ar refrigerado. Abelha sabe disso.

Falando em abelhas, ele trouxe uma vez para a sala de aula um pedaço de asa de avião. Eram duas folhas de metal, recheadas por uma substância parecendo palha, com a consistência de alvéolos. Levíssima, mas com incrível resistência.

A foto de um cipó enrolado num galho. Ele mostrava a economia que há na natureza. Um cipó que se enrola num tronco irá cobrir, de um ponto ao outro, a menor distância possível entre esses dois pontos. Nenhum milímetro a mais ou a menos.

Não pensem que essas explicações ficavam só no romantismo. Era tudo pura matemática mesmo, aquela dos x e dos y.

Ao longo de suas aulas, ele ia contando a história de todos esses matemáticos, homens e mulheres, na maioria das vezes incompreendidos pela sociedade. Existiram aqueles que se destacaram na sociedade de seu tempo, que foram amigos de reis e rainhas, muitos tendo enterros ilustres, sepultados ao lado da nobreza. Mas a grande maioria viveu à margem, muitos morrendo na mais total miséria, alguns completamente loucos. Em todas as aulas ele trazia a foto do matemático do dia, e os títulos das aulas eram sempre em grego ou em latim.

Nas suas aulas esses matemáticos ganhavam vida, tinham suas biografias contadas cheias lances dramáticos, despertando o crescente interesse e a emoção dos alunos. O ponto de máximo da aula, era o final, onde o professor reproduzia na lousa a mesmíssima assinatura do matemático que assinava a aula do dia. E as aulas sempre acabavam com aplausos.



O professor nunca sonegou aos alunos nenhum dos seus conhecimentos, antes os incentivava a aprender com ele o máximo que pudessem, e que saíssem dali montando empresas de consultoria na área de exatas, como ele fez, desde os anos oitenta, ganhando fábulas de dinheiro.Vi na Internet que sua mais recente consultoria ficou em três milhões de reais.

Ele dá essas aulas até hoje, aos domingos pela manhã. A classe superlota, mesmo em feriados, carnaval, natal, ali não existe feriado, não existe ausência, os alunos se desesperam para não perder nenhuma aula.



Ali eu vim a aprender que a matemática era a ferramenta de Deus, e que ao freqüentar aquele curso, eu estava me aproximando Dele. O mesmo Deus que muitos insistem em dizer que se encontra somente nos templos. Mas para mim era ali, em meio às piadas, notações, história e conhecimentos que Deus se fazia presente. O interessante disso é que o professor nunca defendeu Deus em nenhum de seus argumentos. Ele insiste mesmo em dizer que não crê em nada, antes crê apenas na natureza, a physis, como ele gosta de dizer. E ele foi na natureza, muitas vezes, em formigueiros e cupinzeiros, buscar os elementos para as suas mais notáveis consultorias.

O professor mora sozinho no interior de São Paulo, num castelo medieval desenhado e construído por ele, acompanhado unicamente de seus gatos, todos pretos.

sábado, 19 de abril de 2008

Você pode curar sua vida?

Dor nas costas, dor nas costas, dor nas costas. Sempre que você estiver aqui, lendo qualquer coisa que escrevo, saiba que está lendo um texto escrito por uma mulher que sofre de dor crônica.

Já me acostumei com ela, até. Em dias que está mais branda, dá para seguir sem remédios. Deixo para tomar quando a coisa aperta, até porque não quero ficar resistente à ação analgésica. O ortopedista me indicou: acupuntura, hidroginástica ou dança. Para os dois primeiros eu não teria dinheiro. Dançar até que gosto, colocar uma música para tocar em casa, e improvisar qualquer coisa. Mas tenho preguiça, e tem também o fato de que chego do trabalho sempre exausta, por conta de duas horas a bordo em um metrô, outro metrô, mais outro, uma caminhada e um ônibus, sendo que o ônibus eu preciso aguardar uns 30 minutos, e venho em pé na condução, muitas vezes. Esses três embarques em metrô é porque eu faço uma recuada para não embarcar na plataforma da estação Sé, tenho muito medo daquela plataforma lotada. Então eu volto duas estações, e então retorno.

Então minha dor só piora, porque são 4 horas por dia viajando em pé muitas vezes, em conduções lotadas, péssimas, as linhas de ônibus da minha região possuem carros que são verdadeiras sucatas ambulantes, barulhentas, desconfortáveis, mesmo viajar sentado é desconfortável.

Minha última analista, aquela que me levou toda minha pobre poupança, dizia que dor nas costas, dores na coluna de um modo geral, é uma doença comum
em pessoas que não se sentem apoiadas em Deus. O pior é que ela estava certa. A escritora americana Louise L.Hay dizia o mesmo.

A doutora dizia também, que a pessoa que sente falta de apoio em Deus, teve ou tem problemas com o pai. E então ela acertou novamente.

Não confio em Deus. Minha relação com Deus é assim: tomara que ele não me ache, que ele me esqueça, que ele me deixe bem quietinha aqui no meu canto. Vai que ele queira me ensinar alguma coisa, me dar alguma lição, aquelas coisas terríveis que nos acontecem, e alguém sempre fala assim: isso lhe aconteceu para o amadurecimento de sua fé... Não, não quero nada disso, não preciso apanhar da vida mais do que já apanhei.

Então eu me escondo de Deus como posso.

Minha religiosidade se encontrou na figura de Jesus Cristo. Cristo é a parte macia de Deus, como dizia Adélia Prado. Com Jesus eu não tenho problemas. De Deus, quero distância. Complicado não é mesmo? Mas a minha relação com Deus é assim.

Então para você entender melhor, devo explicar, e acho que isso será bom para mim, quem sabe eu não exorcize esses demônios todos.

Quando eu era criança, e meu pai pisava em casa todas as noites, eu me escondia o melhor que podia. Ia para algum cantinho atrás de algum armário, e pensava assim: quanto mais quietinha eu ficar, quanto menos eu me mexer, menos risco eu corro de meu pai me achar, e de ele me fazer alguma maldade.

Entenderam?

A doutora, sempre que eu começava a me queixar do meu passado, me interrompia com a mesma pergunta: Elisabete, isso está lhe acontecendo AGORA? O seu pai está lhe maltratando HOJE?

Ela me fez essa pergunta por mais de um ano, até que um dia eu concordei, aquilo era passado, e eu não ia resolver meu presente remexendo nele. Foi numa reunião de grupo, pois eu fazia sessões individuais e em grupo, e o esposo dela, que também participava, chegou a gritar comigo:

- Elizabeth! se por acaso entrar um malfeitor em sua casa esta noite, e começar a lhe agredir, com intenção de lhe matar, por acaso o seu pai não defenderia você até com a própria vida?

Sim, a minha resposta foi sim. Tenho certeza de que meu pai daria a vida para me defender, se fosse necessário, até porque ele é um homem muito valente.

Meu pai está com 85 anos, não bebe há uns 7, arrependeu-se de seus erros, me ajuda em muitas coisas, e é um homem bom. Não tenho mágoas dele hoje.

Mágoa maior acho que tenho de Deus. E de mim.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Se eu tivesse um milhão, o final

Na postagem passada, melhor dizendo no capítulo passado, cometi a sandice de achar que conseguiria trazer leitores aqui de volta, para ler a segunda parte de uma reles história em quadrinhos. Ou melhor, aprofundando mais, cometi foi a sandice de acreditar que alguém estava lendo a postagem passada.

Meu “jeito bipolar de ser” tem desses achismos, faço graça boba e fico pensando que alguém está gostando. No dia seguinte, vem a ressaca, e eu morro de vergonha das coisas que fiz na fase eufórica. Ainda bem que foi aqui, mas já fiz muito disso ao vivo e a cores, creio que já contei essas histórias.

Dito isso vamos em frente. Mesmo que ninguém volte, a minha mente precisa desse desfecho, senão ficarei com aquela sensação que a gente tem quando ouve uma música só até a metade, fica faltando o tantam final. Uma vez li que Bach se levantou da cama para fazer o tantam final no piano, de uma musiquinha que seu filho estava tocando e não executou até o fim. Tudo bem que Bach era um gênio, e querer imitá-lo é muita pretensão de minha parte. Direi portanto que minha mente de antiga arquivista no Bank of London – trabalhei lá, acredite se quiser – precisa disso.

Só que não posso continuar sem explicar que trabalhei na filial paulista do Bank of London, não quero aqui dar uma de viajada só para enganar algum leitor desavisado.

Mas agora PROMETO que acabo a historinha.

No capítulo passado, todo o dinheiro do Tio Patinhas voou, e espalhou-se pela região. Todos correram a catar as notinhas. O Donald também, e resolveu partir pelo mundo, só na boa vida e gastança. Os seus sobrinhos não quiseram ir com ele, ficaram tomando conta da fazenda junto com o Tio. Então vocês imaginem o Donald partindo com aquela vareta às costas, e pendurado nela um saquinho de dinheiro com aquele cifraozinho.

Só que Donald não conseguiu nem sair da cidade. O patinho do trem e o do ônibus, juntamente com todos os patinhos daquele lugar, largaram seus afazeres e caíram na farra, na festa, na vida mansa. Todos andando para lá e para cá com um saquinho de dinheiro às costas.

Então todos ficaram naquela vida boa, até que os suprimentos de alimentos deles foi acabando, e vocês se lembram quem foi que ficou tomando conta de uma fazenda?

Então eles foram comprar mantimentos no Tio Patinhas. E o Tio Patinhas fez uma tabela de preços assim:

LEITE: $ 5.000.000,00 o litro
OVOS: $ 2.500.000,00 a dúzia
BATATAS: $ l.500.000.00 o quilo

Daí para mais. Para assombro e desespero de todos os patinhos do lugar.

Foi assim que o dinheiro voltou às mãos do Tio Patinhas, foi assim que todos voltaram aos seus afazeres, foi assim que Donald voltou a trabalhar na plantação. E a chutar a enxada, bater com o cabo na testa, cair no balde, aquela situação toda.

Para mim o bacana dessa historinha, foi que o pessoal lá da Disney contou, de uma maneira divertida, os princípios básicos da Lei da Oferta e da Procura. Claro que fizeram também uma disfarçada exaltação ao capitalismo, mas isso já é muito complicado para alguém como eu comentar, até porque como eu já disse, minha cultura é de almanaque.

Mas ficou demonstrado que HQ também é cultura!

FIM




quarta-feira, 16 de abril de 2008

Se eu tivesse um milhão


O pessoal elegante da blogosfera, numa nova mania pra lá de chique, está declinando a lista dos livros que leu para compor a sua, digamos assim, a sua filosofia de vida. E eu morro de inveja. Primeiro porque nunca li os tais livros. Segundo porque mesmo que eu quisesse, não teria dinheiro para comprar os tais livros. E terceiro, e o mais vergonhoso de todos, é que a minha lista de leituras é impublicável, pelo menos nesses blogs elegantes.

Mas aqui, aos meus (02) leitores, não tenho vergonha de contar que o Almanaque do Pensamento, a revista Seleções do Reader’s Digest, e uma montanha de histórias em quadrinhos, foram a base de toda a minha cultura.

O Almanaque e a Seleções eram o que o pessoal lá em casa lia, esses dois juntos me deram todo o meu pouco conhecimento de história mundial, geografia, ciência e curiosidades, e quando eu digo pouco é pouco mesmo, como não poderia deixar de ser numa cultura de almanaque.

Os HQ fizeram o resto, daquela forma precária deles. Por culpa deles eu acreditava piamente que na África existiam civilizações antigas por conta do Tarzan, e que existia um país de nome Bengala por conta do Fantasma, e minha mente fértil aceitava que o que vinha de Superman, Legião dos Super Heróis, Batman e Mandrake eram conhecimentos científicos. E o resto das bobeiras vieram de todos os outros.

Que eram muitos: Gasparzinho, Recruta Zero, Bolinha, que saudades do Bolinha. Alguém aí já ouviu falar em Pafúncio? Era um HQ muito bacaninha, era basicamente a história de um paspalho casado com uma megera. Os sobrinhos do capitão! Nessa eu peguei você, duvido que você conheça. Havia o Brasinha, era um demoniozinho, que deve ter vindo num contraponto ao Gasparzinho, havia o... vou parar, porque estou fugindo do assunto.

Porque o assunto é a minha cultura de almanaque. (Vocês gostam do Asterix?)

Então vou dividir minha cultura com vocês, e contar aquela que para mim é a historinha de HQ mais bacaninha de todas as que já li. Claro, cultura inútil. Se você não estiver a fim de perder tempo, ainda é tempo de parar por aqui. Se você parar, em primeiro lugar peço desculpas. E em segundo peço que volte amanhã, prometo que vou elevar o nível.

Mas agora estou mesmo é com uma vontade louca de contar a historinha. Como meu filho nunca a quis ouvir, e provavelmente meus netos, se os tiver, muito menos, essa pode ser minha última oportunidade, que eu não vou desperdiçar. Então lá vai:

Esta historinha é do Tio Patinhas e seus sobrinhos, e não se passa em Patópolis, e sim no campo. O Tio Patinhas tinha uma plantação e uns bichos, uma fazenda, e os três chatinhos lá, mais o Pato Donald eram seus empregados, aquela coisa forçada parecida com trabalho escravo. Aliás, curiosa essa família de patos não é mesmo? Todos são parentes de todos mas ninguém é parente de ninguém. Sobrinhos sem pai e sem mãe, um tio que não é casado com a tia, tem avó mas não tem avô, antes um tio que é velho mas que chama a vovó Donalda de avó, mas estou novamente fugindo do assunto e o que é pior, não sendo nem original, porque esse pensamento não é meu.

Continuemos. Os sobrinhos trabalhavam na plantação. O Donald, claro, sempre se queixando, identifico-me com ele. Também me queixo e também jogo as coisas longe e acabo me machucando feito ele, por isso acho hilário quando o Donald chuta uma enxada, machuca o pé, bate o cabo da enxada na cabeça, se desequilibra, cai de cabeça no balde, sai com o balde na cabeça, tropeça de novo e recomeça todo o ciclo. Tenho manchas roxas espalhadas no corpo para provar que também sou assim.

Mas pelos céus! Não consigo seguir com a história, daqui a pouco terei de dividir em capítulos. Vamos em frente. O Donald se queixava, e suspirava assim: - Ah, se eu tivesse um milhão, nunca que eu ia ficar aqui nessa enxada...Mas o Tio Patinhas, com um pé na bunda o convencia a continuar a trabalhar.

Mas veio um ciclone. Ou tornado. Qual é qual? Não sei, imagine aquele funil de vento de desenho animado chegando, e levando tudo com ele. Levou também o celeiro, esqueci de dizer que nesta historinha o Tio Patinhas guardava o dinheiro num celeiro. E todo o dinheiro do Tio Patinhas voou.

Todos saíram correndo a pegar o dinheiro do Tio Patinhas, inclusive é claro, o Donald. Menos os chatinhos politicamente corretos dos três sobrinhos bobinhos vaquinhas de presépio. Eles até perguntaram ao Tio Patinhas se eles deveriam correr para pegar o dinheiro de volta, ao que o Tio falou – não precisa, vamos continuar a trabalhar.

Um parêntesis – amo o Tio Patinhas, e muitos dos meus hábitos de sovinice vieram dele em linha direta, principalmente o maior deles, que é o de ler jornal dos outros. Acho um tremendo absurdo gastar dinheiro com jornal, com tanta gente perdulária à disposição que pode fazer isso por mim. Sempre gostei também de aproveitar tudo, e de sovinizar tudo. Nos meus tempos de colégio, eu pedia na cantina um copo de suco de laranja e outro vazio. O vazio eu enchia de água e açúcar, e dividia o suco de laranja em dois. Aquelas laranjadas enganaram muito a fome de uma estudante pobre.

Mas noto que interrompi de novo a historinha, e como já estou passando do tamanho recomendável para segurar um apressado leitor de blogs, paro por aqui. Não me resta outra opção senão remeter você, leitor, ao próximo capítulo. Dessa forma também crio um gancho, uma vez que audiência aqui está dando traço. É uma pena (ou uma vergonha como queiram), eu ter de fazer gancho com historinhas de Tio Patinhas, vejam só a que ponto fui chegar. Depois quero ser respeitada nos blogs elegantes.

Só não sei o que vou dizer amanhã para aqueles que pedi para voltar amanhã, isso se eles voltarem, o que é pouco provável.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Anjo de primeira viagem

Andei falando em anjos aí abaixo, então me lembrei de uma historinha interessante que me aconteceu. Num belo dia, ou melhor, num triste dia, eu saí da cama me sentindo um caco. As costas doíam, sentia que ia ficar gripada, a noite fôra mal dormida, cabeça pesada, um sono inacreditável. Sentia-me um lixo. No ponto de ônibus, todo o meu ser dizia NÃO àquela coisa sacolejante. Pensei, não vou agüentar um ônibus, não com essa cansaço todo que estou sentindo, não com o dia terrível que terei pela frente. Contei o dinheirinho da carteira. Dava para um táxi.

Se eu estivesse na plena posse do meu juízo não faria aquilo, pois noves fora zero, o valor do táxi era exatamente o dinheiro que eu ganharia naquele dia de trabalho, o mais correto seria voltar para a cama e ficar empatada. Mas trabalhador responsável, leia-se besta, tem dessas coisas. Mesmo morrendo, vai trabalhar. E lá fui eu, e de táxi.

Eu trabalhava na Praça da República, um endereço fácil para qualquer taxista. Disse o meu destino ao motorista, e despenquei no banco de trás.

Mas mesmo morta de cansada, eu nunca desligo as minhas antenas, e as minhas me avisavam que algo estava estranho. Notei que o motorista não parava de me olhar pelo espelho retrovisor. Então o meu olhar encontrou com o dele. Então ele falou:

-Moça - naquele tempo ainda me chamavam de moça - veja bem - (não vem nada de bom depois dessa frase) - É que hoje é a primeira vez que eu dirijo depois de tirar a habilitação. Para dizer a verdade, hoje é também o meu primeiro dia num táxi, e eu estou muito nervoso. Será que você poderia me ajudar?

Naquele momento minha adrenalina disse: presente! picos altos. Empertiguei-me no banco. Avaliei rapidamente a encrenca em que tinha me metido, e vi que tinha duas alternativas: a primeira seria descer ali mesmo, e deixar o taxista entregue ao seu nervosismo de principiante. A segunda era assumir a posição de co-piloto, ou, no caso, professora de auto escola. Escolhi a segunda, mas não elogie minha bondade por isso. Escolhi a segunda porque o táxi já me havia afastado de qualquer possibilidade de encontrar um ônibus.

- Tudo bem, mantenha a calma. Fique na direita, é melhor para você. Cuidado, você está indo novamente para a esquerda. Olhe, aquele caminhão está sinalizando, deixa ele passar. Ali adiante nós iremos entrar à direita, é bom você já ir sinalizando. Sinalizando para a direita, você está dando seta para a esquerda. Você está vendo as placas? Quando a gente está desorientado no trânsito, é só ler as placas. Está vendo? Centro, nós estamos indo para o Centro. Não, não, não entre aqui, nós vamos sempre reto.

E assim fui dirigindo a situação e acalmando o moço. Quando estávamos já quase chegando ao meu destino, ele já estava bem mais calmo. Ele ainda tinha me dito para ajudá-lo a chegar num outro endereço, após aquele, então eu ainda o orientei a como chegar nesse outro lugar.

Quando pisei na calçada, eu estava me sentindo totalmente disposta, minha coluna já não doía, os sinais da gripe que eu sentia que ia pegar tinham desaparecido, a cabeça estava ótima e o sono já tinha ido embora por completo, até porque eu tinha perdido todo o sono na primeira curva mal feita que o taxista fez. Tudo efeito da quantidade enorme de adrenalina que minhas assustadas glândulas segregaram.

Rapidamente firmei o olhar para me certificar se o moço estava pegando o caminho correto que eu tinha ensinado, quando, cadê ele? O taxista sumiu, não havia nenhum táxi por ali.

Fiquei matutando: Será que anjos andam de carro por aí? Será que o bom Deus mandou aquele moço atrapalhado só pra me levantar? Seria ele um anjo?

Mas enfim deixei de lado pensamentos românticos ou místicos, já eram horas de eu estar há muito em minha mesa. Mas no trabalho, revi toda a cena, e gostei de pensar que talvez fôssemos apenas duas vidas atrapalhadas que se cruzaram, e se tornaram momentaneamente anjos uma da outra.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A sutileza

Foi então que um certo cavalheiro do meu relacionamento, em viagem a Paris, me perguntou: - você quer que eu lhe traga algum perfume? Diga qual e eu trago. Mas eu respondi: - não, eu gostaria muito mais se você me trouxesse um livro. Ao que ele replicou: - mas você não fala francês. Eu disse: - não tem importância, mesmo assim eu gostaria muito de ter um livro comprado para mim na França.

O sujeito foi e voltou. E me trouxe um livro. Um livro comprado na França, não restava dúvida. Porém impresso em papel jornal, numa rastaquera edição brochura, daquelas que aqui nós compramos em bancas de jornal, lá não deve ser diferente.

Já ouvi dizer que o diabo mora no detalhe. Já ouvi dizer também que Deus mora no detalhe. Eu concordo com ambos. Porque para se ter sutileza, é preciso estar finamente ligado a um ou a outro. Ou a ambos, quem sabe.

Para dar uma patada em alguém com luvinha de pelica, creio que é preciso uma certa intimidade com as coisas do mal. Para se emocionar às lágrimas com o 4º movimento da 5ª de Mahler, imagino que é necessário uma certa sintonia com o Divino.

Para as sutilezas do dia-a-dia, penso que é necessário uma mistura dos dois, e eu explico:

Espanta-me, por exemplo, ao andar num corredor estreito de algum supermercado, o carrinho atulhado de compras, precisando passagem, e há alguma pessoa parada tranqüilamente à minha frente, falando ao celular ou em devaneios na frente de uma gôndola. E me vendo, esse é o detalhe interessante. Mas se eu não disser em alto e bom som: COM LICENÇA! a pessoa na minha frente continua calmamente empatando o meu caminho, como se eu fosse invisível. A boa educação requer sutilezas. Andar por aí atento também aos outros é uma forma de ser educado. Quem caminha com essa desatenção tola, como se estivesse totalmente só no planeta, na minha opinião está totalmente desconectado das coisas do bem.

Outro exemplo: na semana passada, ao entrar no metrô, no satânico horário de pico, uma mocinha muito bem vestida me pregou uma violenta cotovelada no estômago. E entrou. Em seguida eu entrei também, mas disse a ela: Querida, você conseguiu entrar? Veja que curioso, eu também! Não sei se a minha frase foi do bem ou foi do mal. Por isso eu não tenho como atribuir as minhas sutilezas ao poder do alto ou ao poder de baixo.

Mas as minhas sutilezas caminham comigo, e não suporto quem não as tenha. Você poderá rir, mas desisti de insistir na paquera de um sujeito quando ele me disse que não sentia nenhum gosto no chuchu. Achei aquilo uma perigosa falta de sensibilidade.

Voltando ao cavalheiro de Paris, acresce dizer que ele me cortejava, e a família dele torcia pelo nosso casamento. Mas eu não quis casar com ele não. Às vezes me arrependo, ele era rico, hoje meu burro estaria amarrado por aí em alguma sombra do interior das Minas Gerais. Mas quando me lembro do livro em papel jornal, sinto que fiz a coisa certa. Se eu tivesse pedido um perfume, ele traria o perfume certo, pois toparia com alguma experiente vendedora francesa, mestra na arte de vender o produto melhor e mais caro. Como eu deixei a compra na mão dele, o babaca esticou a mão para o primeiro livro que viu pela frente, e não foi falta de dinheiro, pois dinheiro ele tinha. Foi desatenção mesmo, falta de sutileza, de elegância. De sensibilidade.

Um sujeito que não sabe a distinção entre uma obra tosca e uma caprichada encadernação francesa, não serviria mesmo para casar comigo. Pois!

E um detalhe sutil da máxima importância: O livro que ele me trouxe, era uma edição francesa de “O caso dos dez negrinhos”. De Agatha Christie. Inglesa.


sábado, 12 de abril de 2008

Anônimos do bem



Eu queria convidar você a vir comigo, e juntos navegarmos na contramão dessa corrente que insiste em querer nos convencer que todo mundo é mau e que as pessoas não tem mais jeito. Para isso eu vou contar alguns fatos simples, do meu cotidiano.

Primeira cena: Meu colega de escritório, o Jonas. Assim como eu, ele ganha pouco. A grande maioria dos trabalhadores brasileiros espera ansiosamente pelas férias, não para descansar, mas para converter dez dias do descanso em abono pecuniário, e com esse dinheirinho, resolver alguma pendência financeira. Com meu colega não foi diferente. Mas a diferença foi que ele gastou todo o dinheiro das férias, veja bem, eu disse todo o dinheiro das férias, cuidando de um cachorro que foi atropelado na porta de sua casa. Gastou e continua gastando, pois ele colocou o cachorro para dentro de casa, e está cuidando das seqüelas do acidente do bichinho, e dando todos os remédios e vacinas necessários.

Outra: Mafalda minha amiga. Ela tomava todos os dias o mesmo ônibus, no mesmo horário. Notou que o motorista do ônibus estava muito raquítico, devia estar se alimentando mal. Passou a levar bananas e biscoitos para o motorista.

Mais uma: minha prima Gláucia. Ela tem uma vizinha tremendamente mal educada e desordeira, que mantém um pequeno negócio de venda de pastéis. Essa vizinha descarta na calçada de minha prima todo tipo de lixo do seu negócio: sacos e copos plásticos, guardanapos sujos, latinhas e garrafas de refrigerante vazias. Minha prima varre a calçada todos os dias, tranqüilamente e sem reclamar, recolhe todo aquele lixo, e ainda estende a varredura para o lado da vizinha mal educada.

Continuando, e novamente no meu trabalho: somos um sindicato de agentes penitenciários. É comum os presídios mandarem refeições embaladas, as tais kentinhas, quando temos associados em treinamento. De vez em quando sobram. Então meu colega Luiz recolhe todas aquelas sobras, e sai distribuindo pelas pontes e viadutos, aos moradores de rua. O JonA, o do cachorro, também faz o mesmo, já aconteceu de ele sair carregando as marmitas para distribuí-las debaixo de chuva.

Marina: ela recebeu a visita de uma vizinha bastante idosa, que chegou chorando. Aquela senhora, de nome Benedita, tinha uma vizinha tremendamente grosseira. Por conta de uma árvore, que despejava folhas em seu quintal, aquela vizinha xingava dona Benedita com horríveis palavrões, chegando até a ameaças. Não havia nada a fazer, pois a árvore estava na calçada, a prefeitura não permitia a poda. Marina se ofereceu para ir duas vezes por dia na casa da vizinha briguenta, varrer e recolher as folhas. E foi. E o fez, até a prefeitura dar uma solução.

Amélia: sempre que encontrava em um supermercado algum produto fora do lugar, como por exemplo, um pacote de salsichas na seção de panos de prato, ela ia devolver o produto ao lugar certo.

Minha querida amiga Osana: ela freqüenta uma igrejinha tremendamente pobre. Osana adoraria dar ofertas em sua pequena e pobre comunidade. Seu marido, porém, odeia crentes, e pensando que ela poderá dar ofertas, a deixa sem nenhum tostão para as despesas domésticas. Então um dia, ao sair de casa para ir à igreja, ela orou assim: Senhor Jesus, eu não tenho nada para ofertar em sua casa, então aceite esta simples caixinha de fósforos, que é tudo o que eu posso dar. Chegando lá, as senhoras estavam justamente precisando de fósforos, para fazer café.

À medida que eu escrevia, fui lembrando de outras cenas. Eu poderia contar de pessoas que recolhem cães e gatos, que gastam o último dinheiro da bolsa para comprar um remédio para alguém, que sacrificam uma linda tarde de feriado para ajudar outras nos estudos. Que trocam o pouco tempo livre fazendo capelania em hospitais. Que ficaram com a responsabilidade por crianças órfãs, que chegaram a arcar com custos de reforma em casas de pessoas necessitadas. E muitos, muitos casos assim, de amor e abnegação. Mas resolvi parar por aqui, porque tenho certeza que você também lembrará de outras pessoas. Então eu acho que você já me entendeu. Existem por aí, sim, a despeito de toda corrente contrária, esses anônimos do bem, gente que faz o bem sem nem mesmo saber que está fazendo. Agem com simplicidade, com pureza de coração, muitos sendo até considerados bobos e sendo alvo de gozações. Mas eles seguem por aí, não se importam com esses comentários, porque nem sequer os atingem. E se você reparar com atenção, há bastante deles por aí.

Mafaldas e Osanas, que materializam o amor e a gentileza em bananas e caixinhas de fósforos.

Então o meu pão de hoje é dedicado a essas pessoas – os verdadeiros anjos.


sexta-feira, 11 de abril de 2008

Céu e Inferno

Mas é claro que o sol
Vai voltar amanhã
Mais uma vez, eu sei
Escuridão já vi pior
De endoidecer gente sã
Espera que o sol já vem


Recebi o diagnóstico na metade dos anos 90. Tarde, portanto. Se tivesse recebido o diagnóstico na flor da juventude, minha vida teria tido um enorme benefício. Isso porque eu teria sido impedida de fazer metade senão quase todas as besteiras que fiz. O bipolar é um indivíduo que se mete em muitas encrencas. No período depressivo, a pessoa não consegue encontrar forças para sair da cama. Tomar banho. Comer. Nesses casos, muitos acabam perdendo empregos, reprovando na escola, estragando relacionamentos, perdendo prazos, vivenciando perdas enfim. Tive muitas.

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim



No período eufórico, a pessoa sai achando que é invencível, que tudo é possível, que ela pode remover montes do lugar. Será que foi para elas o discurso a esse respeito proferido pelo Mestre? A verdade é que ninguém pode acusar o eufórico de não ter fé, tampouco coragem. Ele tem fé em tudo e em todos, nele mais que em ninguém. Então ele assume compromissos que não vai cumprir, faz dívidas que não poderá pagar, se envolve em relacionamentos que não conseguirá manter, e vai se atropelando dessa forma até o fim de sua vida, se não for devidamente alertado por alguém. Ou se não se matar. E a morte vale para ambos os lados: tanto o depressivo quanto o eufórico podem chegar à morte mais cedo.

Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser um normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu?!
Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz


Aos meus dezenove, vinte anos, e mesmo aos trinta, eu sentia que tinha alguma coisa. Mas quando comentava com amigos, e dizia que estava pensando em ir a um psiquiatra, vinha o conselho torto, a voz do preconceito: - Psiquiatra é médico de louco, ele vai lhe convencer que você é louca, ele irá lhe dar remédios que causam dependência, esqueça isso. Infelizmente eu esqueci, porém, fiquei sozinha para contabilizar o prejuízo quando o prejuízo chegou; aqueles amigos não estavam por perto para me ajudar, na hora da forte crise.

Me cansei de lero-lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar opiniões
De como ter um mundo melhor
Mas ninguém sai de cima
Nesse chove-não-molha
Eu sei que agora
Eu vou é cuidar mais de mim!



O bipolar é um doente solitário, pois não existe simpatia da sociedade para esse tipo de doença. É mais fácil conseguir o apoio das pessoas quando se está com um braço ou perna quebrada, veio daí o conselho de uma divertida antiga colega de escritório: ela me aconselhou a comprar uma luva de gesso, daquelas usadas em teatro, e alegar um braço quebrado quando não estivesse bem. Numa situação dessas, ela dizia, todos deixam o acidentado em paz.

Mas como chegar no trabalho pela manhã e dizer: - não falem comigo, estou ciclando. Ciclar é passar de uma ponta à outra do humor, rapidamente, um inferno. Ou: - estou na baixa deprê, não quero falar com ninguém, quero morrer! É desemprego, na certa. E não faltarão conselhos: vá nadar, vá pescar, vá caminhar, vá dançar, vá transar. Ou - você precisa parar de esquentar a cabeça com problemas, é por isso que você fica assim. Ou então o mais "sábio" de todos: - abandone essas porcarias de remédios, são eles que estão te deixando assim. Dá vontade de mandar aquela pessoa dar esses sábios conselhos em uma clínica de tratamento de câncer, para pessoas dependentes de quimioterapia. Diga lá para os doentes: abandone essa droga de quimioterapia, vá nadar, vá passear, vá dançar. Diga ao diabético: pare de tomar insulina, arrume um namoro, a sua diabetes é falta de um novo amor...

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura
Só a dor enobrece e é grande e é pura
Aprende a amá-la que a amarás um dia
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno, e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...



Ou seja, rola preconceito, e do bom, do puro. Por outro lado, o bipolar, a menos que seja um artista famoso, não gosta de ficar falando disso, eu por exemplo não falo em momento algum, nem meus parentes sabem, até porque também eles não iriam se interessar. Então é apresentar esse humor variável, não dar explicações, mas colher as consequências disso. Como esperar que aceitem que, em um momento a pessoa está feliz, de bem com a vida, falante, comunicativa, e em outro não quer conversa com ninguém?

Então ele vive o seu inferno sozinho. Num dia, vontade de não falar com ninguém. Num outro, ou às vezes até no mesmo dia, vontade de sair dançando com o primeiro estranho que passa na rua. Situação muito bem explicada no filme Mr.Jones, protagonizado por Richard Gere.

Só eu sei...
As esquinas por que passei
Só eu sei...
Sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar?
Sabe lá...
E quem será
Nos arredores do amor
Que vai saber reparar
Que o dia nasceu?
Só eu sei...
Os desertos que atravessei
Só eu sei
Sabe lá
O que é morrer de sede em frente ao mar?
Sabe lá
Na correnteza do amor quem vai saber se guiar
A nave em breve ao vento vaga de leve e trás
Toda a paz que um dia o desejo levou
Só eu sei...



Felizmente conheci uma médica que me ensinou a reconhecer os sinais de perigo. A desenvolver o senso crítico, o bipolar quando fica eufórico, perde a autocrítica, fica inconveniente, age por impulso, eu, por exemplo, falo demais, e digo coisas que não deveria dizer, não só falando, mas escrevendo. Perdi duas preciosas amizades, inestimáveis, porque passei e.mail falando além da conta, passei do ponto, magoei demais. Perdas irreparáveis.

Felizmente também, e também graças a Dra.Elizabeth, tomo bem poucos remédios. E tenho usado minha inteligência a meu favor, para não virar vítima de mim mesma, e razoavelmente tenho conseguido. Meus sinais de alerta são quando começo a cantarolar mentalmente a mesma música repetidas vezes, o tempo todo. Ou quando sinto vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.

Vou andar, vou voar
Pra ver o mundo
Nem que eu bebesse o mar
Encheria o que eu tenho de fundo



De resto, vou convivendo com a doença. Por conta disso, tenho uma mente incrivelmente rápida, razão pela qual às vezes introduzo um assunto achando que o meu interlocutor sabe de antemão o que eu estava pensando. Isso gera problemas, mas também me ajuda com a memória, tenho uma memória excelente. A mesma mente rápida também me impede de ler, o que eu sempre mais gostei de fazer. Porém, de uns dez anos para cá, não tenho conseguido. Minha velocidade de leitura é tanta, mas tanta, que me coloca em estado de ansiedade pelo fim do livro, sinto enjôo, preciso parar. Minha capacidade de concentração também é ruim, pois meu pensamento vai de abóbora a avião na velocidade do raio. Sofro de insônia crônica, pois à noite, fico pensando tanto que não consigo desligar o botão. Meu lado depressivo traz consigo dores na coluna, nos olhos, febre baixa, manchas no rosto, inapetência. Mas por incrível que possa parecer, já me acostumei a tudo isso, e sou até bastante eficiente no que faço, pois graças a Deus, meu senso de responsabilidade é alto. Tenho, como já disse, excelente memória, sou organizada, sou rápida nas tarefas, não sou de atrasar trabalhos, cumpro prazos, atendo a todos que me procuram, me esforço tremendamente para ser educada, até para ser perdoada lá na frente quando o mau momento chegar. Se existisse algo como bipolares anônimos, eu poderia dar o meu testemunho como uma bipolar que está conseguindo sobreviver, apesar de tudo.

Como vai? tudo bem!
Apesar, contudo, todavia, mas, porém
As águas vão rolar
Não vou chorar
Se por acaso morrer do coração
É sinal que amei demais
Mas enquanto estou viva
Cheia de graça
Talvez ainda faça
Um monte de gente feliz!

De cima para baixo: Renato Russo, Milton Nascimento, Arnaldo Baptista e Rita Lee, Roberto de Carvalho e Rita Lee, Manoel Bandeira, Djavan, Djavan, Roberto de Carvalho e Rita Lee.

terça-feira, 8 de abril de 2008

A curiosidade

 Então eu fui fazer um exame de densitometria óssea. Se você é mulher e não sabe o que é um exame de densitometria óssea, é porque provavelmente nasceu depois de 1980. Mas o seu dia chegará, espere só. Então lá estava eu, naquela feia e ensebada clínica de convênio. Odeio essas humilhantes clínicas de convênio, atendimento obtido mediante pagamento a prestação, coisa mesmo de gente pobre, ou seja, eu. Irritam-me também aquelas atendentes de sorriso falso, usando aquelas ridículas redinhas de cabelo. Mas estou fugindo do assunto, onde estava eu? Ah, sim, fazendo o tal exame. Foi então que a moça-de-redinha-no-cabelo me ligou lá àquela engenhoca, e cometeu a imprudência de sair da sala. Foi o que bastou para que eu me levantasse, e fosse olhar para aquela máquina esdrúxula, que estava a criptografar os meus segredos ósseos.

Mas a moça retornou, e me passou uma tremenda descompostura, dessas que só nos passam mesmo em clínicas baratas de convênios pobres: - Puxa vida! Mas a senhora se mexeu, danificou todo o exame! E eu: - querida, desculpe, é que eu sou curiosa...

E é verdade, sou curiosa. Infelizmente também sou preguiçosa, portanto minha curiosidade não fez de mim uma cientista, uma culta estudiosa, uma poliglota. Fez de mim apenas uma fuçadora indiscreta.

Já fui retirada das partes proibidas do Metrô Sé por um irritado funcionário. Ali existem galerias sinistras, à lá Borges. Eu já ia descendo por uma escada lúgubre, cheia de curiosidade, quando me interrompeu o tal funcionário. Mas eu já andei nos trechos proibidos, aqueles que têm uma caveirinha de aviso. Só pra ver como era, e nenhum funcionário me viu.

Minha curiosidade já me levou a umas escadas debaixo do altar da catedral da Sé. Encontrei uma cripta fantástica, já estava começando a ler os nomes dos mortos quando fui novamente interrompida, desta vez por um seminarista. Cheguei a ver o nome do índio Tibiriçá.

Nos fundos do Hospital Municipal, minha curiosidade me levou a um enorme corredor em U, ensebado, com uma única lâmpada esquecida lá no alto, pendurada por um fiozinho preto, e sabem o que tem nesse corredor? Gavetas funerárias! Sinistro, algo que escapou ao próprio Borges.

Igrejas e cemitérios seriam um capítulo à parte, eu teria de abrir um post só para contar tudo o que já encontrei fuçando neles. Em igrejas já cheguei a encontrar até dinheiro! Em cemitérios, o mais interessante são as 13 almas do Cemitério da Vila Alpina, qualquer dia falo nelas.

Nos meus tempos de criança, não houve prédio do centro velho da cidade em que eu não entrasse, só para ver como eram por dentro. Adorava ir até a cobertura, conhecer a casinha do zelador, achava que devia ser o máximo morar na casinha do zelador de um prédio comercial. Fui uma das primeiras a saber que nos altos do prédio do antigo Banespa, atual prefeitura, havia um jardim, com árvores e tudo. Depois virou notícia, hoje todo mundo sabe.

Capelas escondidas, a minha curiosidade já me levou a várias. Na rua Xavier de Toledo próximo ao Teatro Municipal há uma, lindinha, muito agradável. Outra bem simpática também há oculta num lugar da Rua Domingos de Moraes. Falando em capelas, minha curiosidade também me levou a conhecer uma clausura de freiras.

A uma usina siderúrgica. Uma fábrica de chocolate. À gravação de programas de auditório. A um templo chinês, que fica no alto de um elegante prédio de apartamentos. Aos cofres dos subsolos dos Bancos. Ao alto da Santa Casa de Misericórdia à procura de uma linda casinha de freiras, que fiquei sabendo que há lá. Não consegui.

Dentre as minhas curiosidades insatisfeitas constam: gostaria de assistir à Missa do Cadáver. É uma missa realizada de tempos em tempos pelos alunos da Faculdade Paulista de Medicina. Quando eles vão descartar alguma peça. Peça para quem não sabe é braço, perna, mão, etc, não me perguntem o que é o etc.

Outra: adoraria conhecer as galerias pluviais, as tais galerias subterrâneas de São Paulo.

Outra não tão difícil assim, o que me impede é só a preguiça: gostaria de estar no Mercado Municipal bem cedinho, na hora em que chegam as mercadorias.

Gostaria também de poder caminhar pelas vias do metrô, à noite, sem pressa...esse é um sonho antigo. Uma época, quando estava em profunda crise deprê, quase coloquei esse plano em prática, pensei em me esconder por lá e passar a noite escondida vagando pelos trilhos. Até hoje lamento o bom senso que se apresentou e me levou para casa.

Já me disseram que é possível agendar uma visita monitorada ao metrô, mas assim não tem graça. Nada me aguça mais a curiosidade do que que uma placa de proibido, ou: não entre! e essa, a que mais gosto: proibida a entrada de pessoas estranhas. Porque essa me dá a deixa da piadinha manjada: mas você me acha estranha? Só que até hoje ninguem achou graça.

domingo, 6 de abril de 2008

pão-de-theodoro

Foi por um triz que eu não me casei com Aristides Theodoro. O pedido de casamento foi feito, em plena Praça da República. Fiquei encantada, tanto com o pedido como com o local do pedido. Amo a Praça da Republica. Foi exatamente lá que eu e Theodoro nos conhecemos, ele tinha uma banca de livros usados, e eu sempre passava por lá, o namorico começou.



Quando ele me pediu, eu dei uma de moça, e disse que ia pensar. Na verdade, estava louquinha para casar, e ali mesmo se desse.Mas o casamento não saiu. Naquele tempo, entre as minhas atividades, uma delas era ser líder leiga em uma minúscula igrejinha metodista. Na igreja metodista, os leigos podem fazer quase tudo o que um pastor faz, com poucas exceções. Chamam a isso Dons e Ministérios. A maior diferença entre um pastor e um leigo, é que o pastor recebe salário. E tira férias, duas vezes por ano.



Então eu tinha essas atividades, e tinha preocupação em deixá-las, achava que aqueles gatos pingados talvez precisassem de mim.



Mas o problema maior não foi esse, foi o próprio Theodoro, que não teve coragem de se casar com uma crente. Acontece que o meu Theodoro é ateu de carteirinha, ateu de crachá, ateu daqueles que carimba o crachá duas vezes por ano. Tem enorme implicância com crentes, com igreja, fala palavrões enormes quando o assunto é Deus, Jesus, então, ele xinga com sonoros e hediondos palavrões. São Paulo ele chama de grande bichona.



Mas eu nunca dei importância a isso, teria me casado com ele assim mesmo, todo esse ateísmo para mim era algum problema com a mãe dele, velhota adventista que já bateu as botas, algum complexo de Édipo mal resolvido, daqueles que Freud adorava resolver. A prova disso é que ele canta os hinos do velho hinário de sua mãe, e chora como um bebê. Tem um verdadeiro crente lá dentro, ah, tem.



Mas ele fincou pé: achou que não daria certo. Nós dois perdemos muito. Ele, porque dificilmente irá encontrar outra mulher de 50 anos gata como eu. Eu, porque perdi a possibilidade de desfrutar da companhia do meu grande amigo. E perdi também a possibilidade de herdar toda sua incrível biblioteca, pois o danado do baiano possui um acervo de uns 6000 títulos!



Eu já me imaginava enterrando o defunto, e herdando sua magnífica coleção. Hoje vejo que não era uma boa idéia, o cabra da peste vende saúde, certamente está destinada a ele uma das alças do meu caixão.



Mas sempre existe a possibilidade de algo sair errado, então sobra a opção de convencer o Aristides a deixar testamento, quem sabe se eu, na qualidade de quase esposa, tenha alguma prerrogativa. Depois do testamento pronto, terei de dar um jeito de fazer o baiano bater com as dez, pois como já disse, o desgraçado vende saúde.



De vez em quando eu ligo para ele com voz bem sensual, falando coisas picantes, ou cultas, engraçadas, charmosas, só pra deixar ele arrependido.



Mas a grande verdade é que adoro aquele baiano. Aconselho você a gastar algum tempinho dando uma olhada aí nos links, você encontrará algo dele, leia Estórias de Curiapeba, não é que ele criou uma cidade muito interessante? Quando ele começou com essas histórias, e começou a publicá-las no jornal de Mauá, ele contagiou a todos. Os seus amigos se envolveram com a tal da cidade, apareceu quem fizesse desenho, planta da cidade, não faltaram palpites de todo tipo. Eu mesma até hoje não perdôo ele ter inaugurado uma livraria em Curiapeba, e não ter me colocado como dona. Mas por conta desse envolvimento todo da gente boa lá de Mauá, a cidade tem mapa, guia de ruas, desenhos das casas de comércio, tem até comunidade no orkut, a mania contagiou a todos. Os seus contos podem não ter o final que o leitor espera, mas o jeito dele contar é cativante, vale a pena conhecer.



E se você que estiver lendo for mulher, estiver encalhada, andar pela casa dos 50 em diante, e estiver a fim de se casar, escreva para ele, ele está doidinho para arrumar mulher. E ele é solteiro, da silva.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

João e Maria

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês


Por um longo tempo de minha vida fui bancária. Bancário tem fama de não fazer nada, e às vezes sou obrigada a admitir que isso é mesmo verdadeiro. Todo final de tarde, lá pelas cinco da tarde, eu, Sandra e Rosana, nos reuníamos para jogar conversa fora. Mas era um jogar conversa fora divertido. Nós inventamos uma brincadeira, que era fazer variações em cima de nossos sonhos, e contá-los como se fossem verdades. Todo final de tarde, nós atualizávamos por assim dizer as novidades sobre nossas supostas atividades, e como tínhamos a faca e o queijo da imaginação nas mãos, a conversa rendia muito. Adultas brincando de faz de conta, de era uma vez.

Sandra era flautista, tinha sonhos de se tornar uma concertista famosa. Rosana se contentaria no próprio banco mesmo, ela sonhava vir a ser uma super gerente, daquelas que têm as contas mais importantes da cidade em sua carteira de clientes. E eu sonhava em montar uma escola para crianças, bem modernosa, ao estilo Rudolf Steiner.

Então a imaginação corria solta. Sandra dava a conta de todos os compromissos de sua agenda, que corria de vento em popa pela Europa. Rosana contava dos almoços e jantares com clientes importantes, negócios e reuniões a agendar. Eu, falava das idéias que andava tendo para incrementar o currículo de minha escola. E fazíamos isso com tamanha riqueza de detalhes, que a brincadeira acabou se tornando um divertido gosto, chegávamos a parar de falar para dar risada daquilo tudo.

Mas o que Sandra e Rosana não sabiam, e vocês saberão agora, é que essa brincadeira eu já fazia há muito tempo, muito tempo mesmo. Eu explico.
A noiva do cowboy
Era você, além das outras três

Venho de um lar super complicado. Para não perder tempo em detalhes cruéis, posso sintetizar dizendo que nosso lar era um pedacinho do inferno. Então creio que a menina que eu fui encontrou um jeito de escapar daquilo tudo, criando um mundo paralelo. Foi assim que, não me lembro como aquilo começou, mas foi assim que eu passei a viver em pensamento dentro de uma novela, com paisagens, casas, personagens e suas famílias, dramas, comédias, todo tipo de situação virtual.
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e os seus canhões


Meus personagens foram evoluindo comigo. Foram crescendo. Noivando. Casando. Tendo filhos. Netos. Morrendo. Ressuscitando. Claro! Sendo eu o próprio deus de minha história, eu podia fazer com eles o que quisesse. Então era muito comum eu dar os retoques que quisesse, melhorar ou piorar o caráter deste ou daquele, matá-lo, arrepender e ressuscitá-lo, ir e vir no tempo, como cabe a um bom deus.
Guardava o meu bodoque e ensaiava um rock
Para as matinês


Cheguei a contar tudo isso para uma de minhas muitas terapeutas, mas ela acabou comigo, dizendo que eu não me satisfazia com nenhum papel que não fosse o papel do próprio Deus. Mas tem papel melhor? Abandonei aquela analista.
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz


Não foi assim com minha querida Doutora Elizabeth, ela quase caiu da cadeira quando contei que fui eu quem inventou o celular, ela teve um ataque de riso. Mas é verdade! Os meus personagens, lá pelos anos 70, já possuíam um aparelho de telefone de se levar na bolsa ou no bolso.E como eu gostava muito dos meus programinhas de televisão, e os meus personagens também, eu inventei uma maneira de eles viajarem pelo mundo sem perderem o horário dos seriados favoritos, inventando assim algo parecido com a Internet ou TV a cabo. Se não me engano também, lá pelo comecinho dos anos 70, os meus telefones quando tocavam, já tinham uma luzinha que acendia. E meus personagens já se comunicavam pelo aparelho de TV. Claro que tive uma ajuda boa dos Jetsons, Perdidos no Espaço e Jornada nas Estrelas. Mas além dos Jetsons, fui somente eu! quem teve a idéia de levar toda essa parafernália para o ambiente doméstico. Se Bill Gates tivesse me conhecido naquele tempo, ele teria ficado milionário bem antes. Meus aparelhos de TV naquele tempo já funcionavam como câmeras ocultas, e eu ainda nem tinha lido 1984, o tal do Grande Irmão.
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz

As minhas personagens freqüentavam salões de beleza que possuíam, ao invés de espelho, uma tela de circuito interno de TV, cuja câmera elas podiam mudar de ângulo pelo controle remoto. Isso nos meus quinze anos de idade! Eu vim a confirmar isso na TV não faz muito tempo. Para mim isso já existia há uns quarenta anos, no mínimo. Também criei para elas uma roupa que podia ser recarregada em uma bateria, então a roupa se iluminava, muito bacana para se dançar na noite. Isso também eu vi recentemente em alguma revista ou programa de TV. E muitas outras engenhocas mais, eu ficaria aqui um bom tempo contando.

E assim o tempo foi passando, meus personagens foram mudando comigo. Foram envelhecendo, foram se tornando mais politicamente corretos, foram adquirindo novos conhecimentos, eu diria.
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país


Se tenho vergonha de contar isso aqui? Sim, confesso que tenho sim. Mas já era mais do que o momento de expor esses fantasminhas, portanto aí estão eles.

Existe algo bom nisso tudo? Claro, sempre existe. De alguma maneira serviu para aquela menina assustada e acuada num lar cruel ter um lugar de refúgio, um cantinho só dela, um mundo onde as coisas não eram caóticas e as pessoas não eram dementes como aquelas com quem ela convivia.

O ruim foi que aquela menina esqueceu de olhar para fora, por conta disso ela teve uma grande perda da visão, e até um ligeiro estrabismo. De tanto olhar sem ver. E aquela garota também não conseguiu, e não consegue até hoje, se acostumar com as coisas daqui. Com a fealdade deste mundo. Com a sujidade das ruas, das praças e das fachadas das casas. Com a desordem, com a bagunça, com a incompetência generalizada da sociedade em que ela convive, com a gritante falta de educação das pessoas. Com a pobreza das idéias. Com a falta de classe, de elegância, de cerimônia entre as pessoas. Com a crueza deste mundo aqui. Tudo muito normal, todo mundo está acostumado a isso. Mas eu não, eu não aprendi. Porque lá no meu mundo, até os vilões tinham estilo.
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido

Ainda hoje, quando estou no limite do cansaço, ou do desânimo, me pego nos jardins de alguma mansão dos meus sonhos, conversando com algum personagem interessante. Ou imaginando um novo final para algum tópico. Posso escolher a cena que quero, como quem escolhe num menu de opções. E posso ficar nela o tempo que quiser.
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
Quando desabafo com alguma amiga ou parente do meu cansaço, do meu estresse, da minha vontade louca de sumir para bem longe, a pessoa acha que estou falando de qualquer coisa que ela também está vivendo, diz que entende, que com ela também é assim, e imediatamente passa a falar de seus próprios problemas, é assim que os amigos fazem sempre, não é mesmo? Mas o que aquela pessoa desconhece é que eu padeço de saudades. Saudades de um paraíso que eu perdi antes mesmo de conquistar. Porque esse paraíso existe somente dentro de mim.

Normalmente aquela amiga ou parente após me ouvir, me aconselha a ter paciência porque Jesus logo irá voltar, e nos levar com Ele, e acabar com todo nosso sofrimento. Esse pensamento sim, me anima. Mas nunca conto para essa pessoa como eu espero que seja esse retorno, mas agora conto aqui para vocês.

Jesus foi embora dizendo que na casa do Pai dele existiam muitas mansões, certo? E que Ele voltaria para nos buscar para ir morar numa delas, certo? Como eu penso que Jesus não mentiria em algo assim tão sério, acredito firmemente que existe um lugar feito sob medida para mim, pois Jesus sendo Deus, sabe exatamente o que é o paraíso para mim.

Tanto espero que Ele volte, que em um de meus cenários, há um portal, lindo, todo incrustado de pedras preciosas, por onde nunca passou ninguém, esperando por sua passagem. E há uma cadeira também, finamente forrada em sedas e bordada com fios de ouro e pedras preciosas, para Ele se assentar. Tudo isso está numa Torre, mas isso eu já não quero contar.
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido

Então se Jesus vem me buscar, o mínimo que eu espero, é que Ele me leve ao cenário da minha imaginação, com todos os detalhes e personagens da loucura da minha imaginação, algo diferente disso não precisa nem vir. E que toda a minha eternidade eu possa passar ali, no local perfeito que eu idealizei. Na companhia das pessoas que eu criei para mim. Nos meus tempos de protestante, eu dizia que esperava a vinda dEle, “para juntos instaurarmos aqui na Terra um mundo de paz, amor, verdade e justiça”. Tudo mentira. O que eu sempre desejei, na verdade, foi encostar para sempre na paisagem dos meus sonhos de infância.

Assim então eu concordo, e digo: que Ele venha! Ele é de longe o personagem mais esperado de minha existência.

Se Ele não quiser vir pessoalmente me buscar, eu dou a opção de uma variação desse tema: Assisti em minha infância um filme, contando a vida de Mark Twain. Mark Twain foi um escritor de livros infantis americano, algo assim como o Monteiro Lobato de lá. Mas sem o comunismo e o ateísmo disfarçado. Pois bem. Nesse filme, quando ele morre, seus personagens vêm buscá-lo, na beira de sua cama. Vem o Tom Sawyer, vem o Huckleberry, vem a Becki. Eles o tomam pela mão, e o conduzem por um lindo caminho iluminado. O filme acaba assim.

Este final também está bom para mim, podia ser assim. Claro que não sou assim tão desapegada do mundo real: meus cachorros de infância, e minhas bonecas, poderiam também vir me buscar.
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Porcos no metrô

Dentre as histórias bíblicas, as minhas favoritas são as que contam a respeito de Jesus de Nazaré. E dentre esses relatos, gosto muito de seus milagres. Os milagres de Jesus nos dão uma pista sobre com quais de nossas dificuldades Ele mais se identifica. Na verdade Jesus se identifica com todas, porém mesmo assim, é interessante analisar o conjunto de seus milagres.

Desses milagres, destaco dois, para mim os mais geniais. O primeiro, que foi realmente o primeiro, foi a transformação de água em vinho. Jesus chega numa festa que está ameaçando terminar num fiasco, pois que o vinho estava acabando, e transforma seis pipas de água choca do deserto em puro e excelente vinho. Posso até imaginar como essa festa acabou! O que Jesus fez foi dar uma levantada no astral da festa, esse é o meu homem!

O outro milagre traz o ingrediente do pão de hoje: a cura do endemoninhado gadareno.

Gadara era um povoado minúsculo. Não esperem de mim definições geográficas, já deixei há muito tempo a Escola Dominical. Mas devia ser algo menor que um ponto no mapa, se é que Gadara estava em algum mapa. Seria qualquer coisa do tamanho de uma Praça da Sé, e acho até que estou exagerando.

Contam os evangelistas, que Jesus entrou na cidade, e imediatamente veio ao encontro dele um pobre homem, vítima de uma terrível doença mental. Essa doença o afastava completamente do convívio social; ele vivia entre as pedras dos sepulcros. Trazia o corpo todo cortado, ele mesmo se feria com pedras. E vivia nu. Talvez seus parente e amigos tenham tentado contê-lo para o bem dele mesmo, porque a história diz que ele era freqüentemente atado com correntes, correntes que ele rompia, devia ser um homem forte. E vivia assim, como um animal, ninguém o ajudava porque ninguém podia com ele.

Naquele tempo, doenças desse tipo eram chamadas de demônios. Contam os evangelhos que Jesus não perdeu tempo conversando com o sujeito, foi logo conversando com a doença dele, perguntou o seu nome. A doença falou pela boca do homem: nosso nome é Legião, porque somos muitos. Jesus então foi logo ordenando àquela doença que se retirasse daquele pobre homem. Então aquela doença, ou aqueles demônios, ou aquele “algo” falou com Jesus, que se fossem expulsos, gostariam de poder entrar numa manada de porcos, que pastava por ali.

Então se deu o fato espantoso dessa história: Jesus concordou! Ordenou aos demônios que entrassem nos porcos. E aqueles porcos, que São Marcos dá conta de serem perto de dois mil, despencaram por um desfiladeiro abaixo. Tremo só em pensar na enorme montanha de porcos espalhada pelo pequeno povoado. Então temos a nossa história assim: de um lado, um homem curado, ajuizado, já vestido, falando perfeitamente. Novinho em folha. De outro, uma montanha de porcos mortos. Paremos por aqui.

Moro num pequeno bairro, poderia dizer que é do tamanho da tal cidadezinha. Então fico imaginando, entre sádica e divertida, eu, euzinha, vivendo uma situação dessas, se algo parecido com isso acontecesse nos dias de hoje. Imagino-me saindo para o trabalho, digamos, numa quinta feira, atrasada como sempre, cansada como sempre, estressada como sempre. Quando vou pisar na calçada, não consigo, está lá um amontoado de carniça de porcos mortos. E ratazanas. E baratas. E no alto, um bando de urubus.

- O quê?! Mas o que é isso? Jesus o quê?! Jesus de onde?!! De Nazaré??!! Então porque ele não faz esse tipo de performance em Nazaré? Porque fazer isso aqui?? Se ele é tão “poderoso” como se falam, porque ele não tirou esses porcos daqui com a mágica dele? O quê?! Uma vida foi salva? E isso resolve os meus problemas?! E o meu ônibus, como vou tomar meu ônibus? Alguém já ligou para a Administração Regional? Alguém vai pagar por isso, ah vai!!

Querido leitor! Se você me acompanhou até aqui, eu tenho duas coisas para lhe dizer. A primeira é: muito obrigada por me prestigiar, acredite, sou muito feliz pela sua presença. A segunda é: se você está escandalizado comigo, pensando – Oh! Que mulher má! Afinal, trata-se de uma vida liberta de uma doença terrível, tudo bem que os porcos estão transtornando a vida dela, mas ela poderia ser um pouquinho mais compreensiva...

Ok! Então, eu lhe convido a me acompanhar numa história nada fictícia.

Local: Metrô de São Paulo. Horário: de pico.

Qualquer usuário, mesmo o mais desatento, já terá notado que de uns tempos para cá, tem aumentado o número de suicídios. Só este ano eu estive por perto em três. A situação é de todos conhecida: A composição pára, as luzes apagam, ficamos uns instantes sem explicação. Mas aí vem a voz: - Estamos parados em virtude de acesso de usuário à via. Acesso de usuário à via é o eufemismo utilizado por eles para explicar que alguém saltou para fora da ponte e da vida, como diria João Cabral de Melo Neto.

É verdade que nesses momentos, eu murmuro em meu íntimo uma pequena prece. Mas é verdade também, que algo socado lá dentro de mim, que eu chamaria de espírito de porco, pensa assim: Putz, logo agora?...

E sempre tem um mais cara-de-pau que verbaliza: “ISSO É HORA DE ALGUÉM SE MATAR, NÃO PODERIA SE MATAR AO MEIO DIA!?” E uns três ou quatro passageiros dão um risinho nervoso de concordância.

Então a coisa fica assim. Enquanto nós, estressados e calorentos, conferimos no relógio a extensão do nosso atraso, lá na frente, funcionários mais que preparados para isso, estão retirando aquele cadáver, ou o que sobrou dele, dos ferros e dormentes, talvez até a poder de ácido e ferramentas, não sei, nunca vi. Em pouco tempo a composição segue, passamos por cima das manchas do que foi uma vida, e ao chegarmos ao nosso destino, antes, ao passarmos pelo bloqueio, já esquecemos o fato totalmente. Somos assim, insensíveis, egoístas, umbigocentristas.

Eu sei o que você irá dizer: - O que eu posso fazer, a vida segue! Concordo com você, a vida segue. Eu também, infelizmente, não tenho outra coisa a dizer nesse caso.

Mas agora creio que você já tem mais elementos para entender a minha hipotética irritação matinal com o hipotético milagre de Jesus despejando montanhas de porcos na rua da minha casa.

Eu nunca tive a intenção de explicar a bíblia, gosto apenas de recontar suas histórias, mas nesse caso, eu me atreveria a dizer que talvez Jesus tivesse feito a coisa dessa maneira complicada, para que ficasse registrado por séculos e séculos, a quantidade de lixo que pode caber dentro de uma única pessoa.

Os evangelistas finalizam a história contando que Jesus foi agarrado pelos colarinhos, e levado até os limites da cidade, para que tomasse e seu rumo e não voltasse nunca mais.

O que mais me chateia nessa história toda, e me leva à náusea, é saber que se eu estivesse lá, teria me comportado exatamente da mesma maneira
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