domingo, 28 de dezembro de 2008

Elias, os bichos do mato e o Banco Central

 Elias passou por aqui. Estava todo atrapalhado com nosso padrão monetário, querendo obter explicações sobre o nosso dinheiro. Como a explicação seria longa, e eu tinha um pão de granola ao forno, pedi a ele que sentasse. Fiz um café.

- Então, filha, começou ele. No meu tempo usávamos prata e outro, ou fazíamos trocas. Mais tarde, nos tempos de Jesus, usávamos denários com a efígie de César. Agora noto que por cada lugar por onde passo há papéis diferentes. E o que são vales? Ouço muito falar de vale isso, vale aquilo...

Por sorte eu tinha algum dinheiro em casa, coisa rara de acontecer. Fui mostrando a ele algumas cédulas.

- Onde está a imagem de César? Vocês preferem as imagens de animais do mato?

- Pois é, senhor Elias, os nossos césares de cá não ficam muito tempo no poder. Esses são animais queridos, de nossas florestas, mais admirados pelo povo do que muitos de nossos governadores...

- Que coisa triste, lamentou Elias...

- Mas assim é. E as gravuras com pessoas já causaram muita polêmica. Houve uma época em que um determinado dinheiro levou a imagem de um notável escritor e poeta do nosso país. Mas a família dele ficou inconformada, pois aquela nota, com a inflação foi perdendo o valor e...

- Infla o quê, filha?!

Ai Jesus! Como eu saio dessa?

Mostrei uma nota. Senhor profeta eu disse, todo e qualquer dinheiro neste país leva esta assinatura aqui. É a assinatura do presidente do nosso Banco Central. Banco Central é o nome da instituição que cuida para que o dinheiro não perca o valor.

- E quando um dinheiro deixa de ter valor, interessou-se Elias?

- Existem meios, eu disse, fórmulas matemáticas, de se calcular a quantidade de dinheiro que há nas mãos de uma determinada população. Se houver dinheiro demais, as pessoas podem sair comprando desenfreadamente, gerando uma crise no abastecimento, na reposição desses bens que foram comprados. Isso vai prejudicando, ponto a ponto, todo o cliclo de produção. Algo assim, se todos saírem num mesmo momento comprando azeite e farinha, esses acabarão rapidamente, e não haverá como repor, porque a plantação de trigo e azeitonas demanda um certo tempo. Haverá falta de pão.

- Por outro lado, se a moeda escassear, as pessoas não comprarão nada, a farinha e o azeite ficarão parados nas prateleiras. E lá na ponta, muito trigo e azeitonas irão se perder. Todos passarão fome.

- Então o que é preciso fazer? perguntou Elias

- Quando há muito dinheiro circulando, o Banco Central eleva a taxa de juros. Lembra da parábola do Mestre, dos sujeitos que receberam talentos do patrão para administrar? Ou você comercia com o dinheiro ou você o leva aos banqueiros, a história é sempre a mesma. Se aumentarmos demais as taxas, todos vão querer levar o dinheiro aos bancos, viver de juros, isso paraliza as atividades econômicas. Se for uma taxa baixa demais, ninguém levará o dinheiro aos bancos, que por sua vez não poderão financiar a produção, parando a economia também. É preciso então buscar um equilíbrio, uma missão difícil e penosa dos nossos governantes, aliada a muitas outras preocupações sobre o incentivo da produção, emprego e distribuição de renda. E muito mais.

- Complicado mundo novo, disse o profeta. E é esse Banco Central aqui, o César dos novos tempos, quem garante a liquidez destes papéis?

Viram como Elias aprende rápido?

Sim, eu disse. O órgão garantidor e regulador da saúde de nossa moeda é o Banco Central, o César do nosso tempo. E os papéis e moedas diferentes são as moedas divisionárias, para facilitar as transações. A menor delas é esta aqui – eu tinha um monte delas – e a de valor mais alto vale cem, é uma verdinha, muito difícil de aparecer aqui em casa...Não falei sobre uma outra verdinha, seria muito complicado explicar o que é paridade, e meus conhecimentos de economia não chegam a tanto.

- Mas você não me explicou sobre os vales, lembrou Elias.

- São moedas paralelas, eu disse. Determinadas empresas idôneas lançam esses dinheiros no comércio (felizmente eu tinha algumas), que pela sua reputação também são aceitas na compra de alimentos.

- É uma espécie de vale-farinha? (Viram?!)

- Iiiiiiisso, senhor Profeta!

Felizmente o pão de granola ficou pronto, nós o comemos com o cafezinho e Elias disse que precisava partir, não sem antes me tascar uma profecia:

- Eis que seus vales –farinha e seus dinheiros não acabararão.
Bom demais.

Da mesma série:

Elias expresso

Os anjos comprimidos

sábado, 27 de dezembro de 2008

A ligação direta

 Pois é, cá estou eu tentando uma gambiarra, no desespero de ir ao encontro do moço bonito de olhos bonitos, quem não tem chave vai de ligação direta, no cinema dá tão certo, o wesleisnaipes vai lá, liga os fiozinhos e tal, cadê os fiozinhos?!?!

Sem a chave eu só chego até você de ligação direta, frase bacana ligação direta, realmente algo que dispensa qualquer chave.

Cadê os fiozinhos?!?!

Se fosse no cinema eu já estava rodando, no cinema TUDO dá certo, lembra a moça que não sabia pra que lado iam os narizes na hora do beijo? Ô tempo inocente, meu problema não é o nariz são os óculos. Se tiro os óculos dou bandeira de que estou a fim do beijo, se não tiro e vem o beijo não cai legal com os óculos, o quê fazer?

- Já sei! Precisa desencapar, porquê é que nos filmes já estão desencapados, vou de tesoura? e se der choque? larga de ser besta, choque, não está ligado em tomada...aiii, minha cabeça, ai, ui, ui!!!

Vou deixar pra lá isso de ligação direta, nós não temos mesmo ligação direta, não temos nem chaves, se desencapar fiozinhos é tudo o que me resta pra tocar em você estou mal mesmo.

Em oliúde dá tudo certo...será que os artistas usam balinhas de menta na hora de beijar? Gostei do filme em que na hora do love a mocinha corre ao quarto para trocar de calcinha, com essa eu me identifico, preciso jogar fora aquele monte de calcinhas bege, diz que calcinha bege e sutiã branco brocha qualquer relação...

Definitivamente não tenho coragem, a ausência de ligação direta é tudo o que me separa de você, parece letra de Cássia Eller...

Putz!

E eu tinha colocado duas pretas e uma de oncinha na mala...

Primeiro dia de morar junto




Já vou logo avisando dá um fim nesse gato você é que vai cozinhar eu detesto futebol desliga! ai, arroz refinado? nananão só como integral. Não gostei deste sofá aqui empurra um pouquinho mais pra lá? que livro chato é esse aí para de ler você já levou o lixo pra fora? Não tô achando espaço no banheiro pendura este ganchinho pra mim mô? Ó, quero que fique bem claro o sabonete dove é só meu você tem prestobarba? Detesto toalha molhada na cama cuidado não senta na minha blusa! Ai amor não fala assim de boca cheia tua mãe não liga toda hora não né? Qual tá tocando o seu ou o meu ai mô muda o toque do seu, assim não mais pra lá iiiisso! esse quadro aí não tá torto pra que esse monte de revista ah não a Contigo deixa.

Mãos de afeto



Ele não era um namorado, era um ficante. Só que naquele tempo essa palavra ainda não existia.

Na verdade era um aproveitante. Só aparecia longe longe, só ligava de quando em nunca.

- Que mãos frias você tem, ele implicava.

Mal sabia ele que eram frias de emoção, de tensão, de preocupação, quando, meu Deus, quando ele vai dizer que me ama?

Aos sábados ele nunca aparecia.

- É noivo sua boba. Amigas em mesa de bar. Você é a segunda opção dele, se não for a terceira.

- A noivinha deve ser virgem, e graças a você, acrescentava uma outra amiga.

Estavam todas certas.

- Ah, vocês vão ver! Ele vai se decidir por mim, era o que eu sonhando queria acreditar.

E assim ia dando sexo na esperança de receber amor e o tempo passava. Só não passava a implicância dele com minhas mãos frias.

Um dia ele ligou: chego as oito. Como ele era pontual, fui para o fogão faltando cinco minutos. Aqueci as mãos na chama do gás.

- Viu, não estão quentes minhas mãos hoje?

Mas não contei a proeza. Foi a declaração de amor mais tonta e vazia que o sujeito jamais ficou sabendo que recebeu.

Aqueci as mãos em segredo para ele, não acredito que uma outra mulher o tenha amado a esse ponto.

Pô, perdi...

Eu tinha deixado ela aqui, cadê?!

Aijesuscristinho, cadê a chave do corsinha?

Foi assim, eu achei que achando a chave eu achava você – doce ilusão. Não é nada fácil achar a chave que destranca o coração de um moço bonito, ainda mais se esse moço bonito tem olhos bonitos.

Há muita moça bonita com chaves por aí, e bem melhores que de um corsinha...

Cadê a minha chave?! Sem ela como eu chego até você? A distância é considerável, só mesmo achando a chave, meu Deus a chave! eu tinha deixado ela aqui, bem aqui!!

Foi assim: eu cheguei sorrateira e peguei a chave, a chave que você tinha deixado debaixo do capacho, romântico isso deixar chaves sob o capacho. Mas não eram para mim, foi um furto duplamente qualificado. Acho que a chave estranhou minha mão, não abriu não...

Será que está debaixo da agenda? do talão de cheques? do Caprichos e Relaxos?

Será que está debaixo do tapete que eu não tenho? da coragem que eu nunca tive? do corsinha que eu nunca consegui comprar?

Cadê a chave?!

Putz!

Eu já estava prontinha para viajar...

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Muito prazer


Há um programa de tevê passando por aí, em que o ator Luís Salém  interpreta o divertido Betânio, um baiano dividido. De um lado ele está sempre louco para abandonar a barulhenta e festeira Bahia, mas de outro lado ele não consegue deixar de ir à última festa do momento, e com isso então ele nunca consegue partir.

A festa em questão é sempre organizada por uma tal Dondinha, ou Ritinha, ou Cininha, que por sua vez é afilhada de Belinha, e essa é prima irmã de Kekinha e a lista é sempre grande, e sempre assim, no diminutivo e recorrendo a parentescos.

Sou filha de pai baiano e dou risada, porque as referências dadas por parentes são sempre assim. O baiano não existe isolado, ele existe sempre vinculado a um grande parentesco.

A pessoa enquanto não se casa é da mãe dela, sempre da mãe, nunca do pai. Depois de casada, passa a ser do cônjuge, e isso vale para ambos os sexos.

Se fosse lá, eu seria Betinha de Marininha. Se eu me casasse com o moço bonito de olhos bonitos (suspiros) eu seria Betinha de Moço Bonitinho. Eles usam na maioria das vezes a preposição “de”.

Se os nomes forem comuns, como João, Maria, José, então a recorrência é maior, vai até chegar num nome ou local limitante, um divisor de águas, veja este poema de João Cabral de Melo Neto:

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias...
..........................................................
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
(Morte e Vida Severina)

Aqui em São Paulo noto que essa necessidade de fixar parentesco nas apresentações se perde um pouco, pelo menos na mocidade, alcançando a gente talvez lá pela meia idade.

As crianças, os adolescentes e os jovens recorrem uns aos outros, ou ao local onde moram, ao colégio, faculdade, academia, lugares comuns.

- O Mateus, o que anda sempre com o Thiago, da esquina lá de cima...

- A Fernanda, aquela do salão de beleza...

- Alô, aqui é o Rodrigo, da academia.

Os adultos se identificam pelo ofício, pela empresa em que trabalham e também pelos lugares comuns.

- Oi, aqui é o João, pintor. Que esteve ontem com você no bar do Antonio.

Pelo tipo físico:

- Aquela magrinha, a Joana, que trabalha no Banco.

Pelo temperamento:

- A Bete, aquela chata, esnobe, de óculos...

Também pela conduta:

- Aquela loira, gordinha, que dá bola pra tudo quanto é homem...

Escapam disso os que tem nomes diferentes, apelidos originais, personalidades fortes ou tudo isso junto. Minha mãe não precisa jamais explicar quem é ela, e eu a invejo ao telefone. Oi, aqui é a Marina! Dona de um nome pouco comum, uma bela voz e uma personalidade forte, o resultado é sempre um oi Marina!! do outro lado da linha, e isso mesmo quando ela liga para alguém que não vê há anos e anos.

Aqui no blogue eu já fui confundida por um leitor apressado como viúva de Elias, gostei tanto que não desfiz o equívoco, Bete de Elias, taí, gostei... Sim, no norte as pessoas costumam pertencer também aos seus defuntos, como você viu no poema.

Então vocês já sabem, se eu ligar para suas casas direi: Aqui é a Bete, a que faz pães, a de Elias. Creio que assim ficará fácil.

E enquanto existir o moço bonito de olhos bonitos sempre haverá a esperança de essa apresentação mudar.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Natal



Esta vida não é nem de longe parecida com a que sonhei para mim. Falo de minha vida mesmo, não sou candidata a miss universo, confesso que jamais pensei por um instante que fosse na paz mundial.

Nem nos meus pensamentos mais pessimistas, e eu sou pessimista, eu me imaginei batendo à porta da meia idade como me encontro agora. Mas esta foi a única vida que eu tive então é esta a vida que te ofereço aqui.

Salve Rei, salvador da minha vida. Salve Jesus meu Mestre Divino, meu doce amigo, consolação da minha existência, minha única esperança, salve!

Eu te amo.
 

domingo, 21 de dezembro de 2008

Quarto domingo do Advento - O Sorteio



De todas as histórias que Jesus contou, a mais absurda é a que vou tentar resumir:

Havia num povoado um bando de vagabundos bebendo e jogando conversa fora numa praça. Passou por lá um produtor rural que vendo aqueles caras a toa os chamou para trabalhar em sua plantação. Passando por ali mais tarde, encontrou outros vadios que também chamou. Colher uvas. No final da tarde, faltando uma hora para acabar a jornada, encontrou mais desocupados que convidou também.

Na hora do pagamento, não é que o cara remunerou a todos de forma igual?!

Ah! Se eu estivesse lá!!!!

- O dia inteiro aqui cozinhando o cérebro, meu protetor solar já foi pro espaço, e você paga pra mim o mesmo que paga a esses bêbados?!

Eu e toda torcida do Corinhians segundo o Mestre, pensaríamos assim.

Mas Jesus contou essa história para demonstrar o quão acolhedor é o Reino dos Céus. Sem condicionantes, sem senões, sem ordem de chegada e, o que é mais importante pelo menos para mim e não sei se para vocês: sem mérito algum de nossa parte.

Lembrei dessa parábola porque especialmente aqui neste blogue, o último que se candidatou ao sorteio do livro foi o que ganhou, não é bacana? Claro que estou me referindo apenas à ordem de chegada.

Que rufem os tambores!!!! O sorteado foi...

Foi...

Foi... FERNANDO!

Sei muito pouco sobre ele. Que é jovem, algo em torno de trinta e poucos anos. Que vive em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, creio que atua em pecuária. Que é casado. Que por algum motivo que desconheço alterna sua residência entre Brasil e Holanda. E é só.

O seu blogue é um ponto de parada importante para mim. O Fernando interpreta os fatos do dia-a-dia com uma mente lúcida, uma visão inteligente, aguda, como poucos. E ele tem também uma fina inclinação para as artes, o que faz do Lumières um lugar especial.

Eu se fosse você o linkava e o acompanhava...

Leia um texto que ele postou recentemente, dei muita risada:







SACOLERO
Yo estive este fin de semana en Ponta Porã, a princesinha dos ervais, para hacer unas compritas basicas de finales de ano en Pedro Juan Caballero, nuestro vizinho paraguayo.
La verdad es que con estas fiestas todas yo estoy necesitando mucha, pero mucha birita, y algunas cositas más. Con los impuestos de nuestro amable gobierno, lo unico vino baratito que se puede comprar aqui es el Sangre de Boi que es una mierda. En Paraguay el Conha y Toro esta a 3.94 dolares. E también encontré aí mi grande amigo, companhero de muchas noches Johnny Walker, más conocido en Paraguay como el Juanito Caminante.
En cima, la verdad también es que estoy colaborando con la politica de relaciones internacionales de Nuestro Guia, el gran timonero Lula y su sargento Marco Aurelio Top Top Garcia. Estoy ayudando a nuestros hermanos caloteros y socialistas de latino-america.
Mira vos, con este cambio hijo de una madre, al final tuve que pagar una puta cuenta de 3 millones de guaranis en el Shopping China. Ou sea, en troca de birita barata yo estoy injectando plata en la economia de los caloteros paraguayos que no quieren pagar Itaipu y quieren expulsar a los fazenderos brasiguaios.
Pero todo es alegria, somos todos hermanos, la crisis es general pero no pasa nada, como nuestro presidente estoy tomando todas las medidas necesarias, con limón y hielo.

Eh! Fernando, abra as portas de sua casa, o filho pródigo está chegando, está voltando para você. Que você possa, ao conselho do sábio padre Nouwen identificar-se com as três figuras: o filho que foi e voltou, o irmão que ficou e o pai acolhedor.

É este o meu presente para você, Fernando.

É este o presente para todos nós, a segurança da volta ao seio do pai acolhedor, que recebe e não faz perguntas, não importa por onde andamos.

É tempo de retornar, ainda há tempo para retornar.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A oração vazia


“Que sentido tem as coisas? – o grande mentecapto perguntou a si mesmo, sentando-se num banco da nave àquela hora vazia, e veio-lhe de súbito a consciência da própria mentecapcidade, tão despropositada quanto a minha ousadia em escrever semelhante palavra. Não entendia mais nada de nada – e tal desentendimento o atingia tão fundo, que Geraldo Viramundo pôs-se a chorar.

O leitor deve estar lembrado de crise semelhante, que o assaltou, anos antes, quando era pouco mais que um adolescente, também numa igreja, ou, mais precisamente, na capela do seminário em Mariana. Mas daquela feita o choro era fruto de suas meditações, ao passo que agora decorria de constatação nascida da mesma dúvida que o levara, em menino, a interpelar o padre Limeira em Rio Acima: meditar em que? Não havia mesmo nada sobre que meditar, concluía agora. Sentia-se completamente vazio por dentro, numa solidão sem remédio.”


O Grande Mentecapto – Fernando Sabino

Se eu soubesse falar desse vazio que sinto dentro de mim, estava pronta aí uma bela postagem. Mas se eu soubesse falar de vazio eu não tinha vazio, e não estaria aqui falando sobre isso.

Meditar em que? É essa mesmo a pergunta que sempre me fiz.

Quando a lucidez me assalta, como disse Clarice Lispector, eu me dou conta de que há um vazio imenso dentro de mim, mas a lucidez não consegue fazer nada frente ao vazio, só constatar que há o vazio.

Então eu peço a Deus que me ajude a viver com o meu vazio. E que seja este vazio a minha oração. Porque eu cansei de fazer as orações dos outros.

Se Deus for esse Deus que falam por aí, que espera de mim orações performáticas, eu estou realmente metida numa grande encrenca. Se ele esperar de mim posturas vigilantes, atentas, aí o meu caso é mais perdido ainda. Como eu invejo minhas amigas que possuem caderninhos de oração... Eu já me daria por feliz se conseguisse manter um caderninho de anotar coisas.

Sou uma filha vazia de mente vazia, meu Deus. Não sei, absolutamente, em quê pensar, e muito menos o que rezar.

O mais perto de Ti que consigo chegar é quando estou escrevendo aqui. Fora disso, a sensação que tenho é que nem existo...

Tem misericórdia de mim.


Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me ocorreu antes

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me de novo a consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Clarice Lispector

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Atenção, você com essa ficha na mão...

 Você se lembra da VASP? Aos portugueses explico: uma extinta companhia aérea.

Naquele tempo, uma agência de publicidade encarregada de sua campanha, fez um anúncio com
cenas reais, obtidas em aeroportos. Gente se abraçando. Gente chegando, gente se despedindo. Várias cenas assim.

No fundo, a inconfundível música da campanha:

“A Vasp abre suas asas, sua ternura, pra você ganhar altura. Viajar. Voar.”

E uma voz em off finalizando:

“Como é bonito ver gente se comportando como gente”.

Recentemente este blogue viveu um momento especial, que muito me emocionou.

Uma pessoa, num curto depoimento de três parágrafos, sentiu-se tão à vontade em minha casa a ponto de fazer um pungente relato, íntimo, inquietante, pessoal demais.

Só não o trago aqui para a frente porque não me sinto autorizada a tal.

Momentos como esse me arrebatam, me dão vontade de beijar a tela do computador (na verdade beijei). A fragilidade humana me emociona, me sensibiliza, me anima a continuar a escrever.

Como é bom constatarmos que não somos heróis. Que temos, sim, pontos fracos. Mas principalmente como é bom vermos pessoas assumindo seus pontos fracos.

Como é bonito ver gente se comportando como gente...

Uma certa blogueira que por aí há, uma de nome bem pequenininho, também já me fez chorar. Ela começou timidamente, recortando e colando algumas matérias, se aventurando por algumas poesias, quando de repente, num belo post ela nos revelou toda sua linda vida. E desse dia em diante aquele blogue floresceu, em delicada beleza. Ela libertou sua história, como isso é belo meu Deus.

E o que dizer das mulheres poetisas? Entre poesias delicadas, outras bem humoradas, algumas com rima outras mais soltas, de repente uma delas solta um inacreditável lamento, daqueles de doer?

Apesar de perder a paciência com as mesmices muitas vezes (principalmente – e muito – comigo mesma), eu ainda continuo percorrendo a blogosfera, e a escrever nela, porque sou uma colecionadora desses momentos, eles infelizmente são poucos, e falo também por mim. Há super heróis demais para o meu gosto.

Mas eles acontecem, ah sim, acontecem. Eu já ri e chorei ao ver até blogueiro famoso caindo da pose, caindo de boca no chão, revelando talvez sem querer uma dor que lhe ia no fundo da alma, e me emocionando constatava: ah, então esse aí também é gente?...

Cultuamos o engano de achar que devemos oferecer apenas nosso melhor ângulo para a foto. No entanto são essas falas, escorregadas de tapete na opinião dos perfeccionistas, que nivelam as dores da nossa existência. É no compartilhar de nossos desvios que iremos nos reconhecer como iguais. Deixando cair as rebuscadas máscaras iremos nos surpreender com nossos rostos incrivelmente parecidos, meu Deus, como éramos tão parecidos e não sabíamos?!

Ah, blogueiro, abre suas asas, sua ternura, pra você ganhar altura, viajar. Voar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Uma cadeira pra Jesus




Numa reunião de Neuróticos Anônimos é de praxe ouvir aquele que fala em total silêncio. Boca de siri. Boca de zíper. Então certa vez na hora do intervalo eu me atirei ao pescoço de um rapaz.

- Eu também, eu também. Sou igualzinho a você!

O que um neurótico mais ama é encontrar seus colegas de infortúnio. Sentir que não é o único do planeta.

O rapaz contava que era mestre em construir diálogos mentais. Ele escolhia uma pessoa conhecida ao acaso e conversava com ela longamente, articulando suas prováveis respostas. Coisa de doido mesmo. E que ao se encaminhar para um encontro, uma entrevista de emprego, por exemplo, ele articulava tanto mas tanto as prováveis perguntas e respostas que ao chegar lá ele já estava umas cem vezes entrevistado. Sem exagero.

Comigo também é assim.

- Você deve tentar conversar com Jesus, Bete. É minha sensata amiga Beatriz aconselhando. Coloque uma cadeira vazia em seu quarto, imagine Jesus lá, converse com ele.

Quando ouço esses conselhos impraticáveis eu finjo que acato, não quero jogar o jogo do eterno insatisfeito com os amigos que amo. Mas é impraticável porque não sei o rosto de Jesus. E também porque não fico em meu quarto o tempo todo, eu teria que andar carregando uma cadeira.

An? Porque eu não atribuo um rosto aleatório a Jesus? E você pensa que já não fiz isso? Por muito tempo Jesus foi Robert Redford. Conversei tanto com ele, mas tanto, que um dia percebi que eu não falava mais com Jesus, eu falava mesmo era com Robert Redford. Quando dei por mim eu já estava lendo revistas com artigos de cinema para me inteirar de onde Jesus andava.

Não deu certo.

Só sei que no final do dia estou mentalmente esgotada, de tanto que articulei inúmeras conversas. E que se não tomar um bom comprimido, continuo a conversa na cama e não durmo, já me aconteceu.

Pensou que a vida de um neurótico era fácil?

Mas voltando ao tema de Jesus da minha amiga, será que eu vejo Jesus em toda parte, e tanto, que ele já se dissolveu, e está incorporado em todas as pessoas à minha volta? E que nesse desespero de querer conversar com ele eu o busco em todos que eu conheço?

Esse já é o meu lado neurótico esotérico, buscando sim é um meio desesperado de mistificar o meu descontrole emocional.

Mas agora falando sério, acho fácil conversar mentalmente com as pessoas, porque elas mais ou menos são óbvias. Com uma certa margem de erro, posso facilmente intuir suas respostas. Jesus é original, suas falas seriam inéditas, desconcertantes, imprevisíveis, como adivinhar o que Jesus me responderia?

Taí um bom exercício. Se eu conseguir pelo menos chegar perto, creio que terei bem mais da metade de minhas neuroses resolvidas.

Outro, bem mais lúcido, é conversar de fato com pessoas. Quem foi que disse que as palavras do meu próximo não estão cheinhas de Deus?

domingo, 14 de dezembro de 2008

Terceiro domingo do Advento-continuação

Como descrever um som? Como colocar toda a sensação advinda de ouvir um som em palavras, sem ser um Machado, um Dickens?

Como explicar o que é acordar num susto, numa noite silenciosa, ao som de um bumbo, uma gaita, uma viola e várias rabecas?

E a recorrência mental, rápida, que uma criança precisa fazer para classificar em seu cérebro: - o quê é isso mesmo?... E isso com o coração ainda aos pulos pelo acordar ao som de um bumbo, como explicar?

Como explicar para vocês uma melodia que eu mesma já esqueci?

Era uma toada? Sim, creio que era uma toada.

Mais fácil seria recorrer a uma ferramenta de busca, mas não quero, meu Deus, eu não quero, quero falar por mim, mesmo correndo o risco de deixar vocês com uma explicação distorcida de confusa.

Mas tenho de confessar, fui ao You Tube, para onde mais iria eu? E o mais perto que cheguei foi justamente essa canção que toca ao fundo, aumente o som. Ouça, nem que seja pelo menos uma vez as músicas que posto aqui. Há dias em que elas falam mais do que vai no meu íntimo do que os meus textos, e me entristeço ao constatar que quase ninguém percebeu isso.

A canção em estilo de toada, tinha quadras, e o final do último verso de cada quadra se encerrava num lamento, um AAAAAI!!!

Como descrever esse AAAAAAI entoado por vários homens, a quatro vozes, muitos fazendo as vezes de soprano, como descrever isso meu Deus, como?

Eu que sabia cantar em grupos a quatro vozes, conhecia a dificuldade dos ensaios ao pé do órgão; como aqueles homens rudes do sertão acertavam fazer aquele belíssimo contracanto sem estudo algum?

Fico devendo. Jamais conseguirei escrever sobre aquela emoção à altura dela.

E Deus fica me devendo também. Não há registro, os santos oráculos da net não me disseram nada, os homens morreram todos, foi-se de minha memória o verso e a rima.

Ficou só a sensação do susto mais inexplicável que jamais sentirei novamente.

Que o bom Deus um dia me conceda, mesmo que no sonho, o presente mais especial de Natal, que nunca pedi, a graça de me assustar na noite silenciosa com o bumbo, a gaita, a viola e as rabecas, e os homens, os magos recém chegados do Egito com seu entoar lamentado. Com seu Ai.

E papai do céu fica me devendo também a madrugada memorável, resgatando tantas madrugadas infelizes que tive ainda criança, ele fica me devendo a alegria, mais do que alegria, o alumbramento, de abrir as portas da minha casa, mesmo que seja numa outra existência, para o Santo Reis entrar.

(CONTINUA)
Primeiro domingo do advento

Segundo domingo do advento

 

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Loucura real

Quando você vem aqui ler minhas coisas, quero que fique claro que são escritas pela ótica de uma viúva padeira, que realmente utiliza restinhos de ingredientes para fazer sua massa, ou seja, não sou especialista em nada. Ciência é o que você não encontrará aqui.

Isto posto, quero que venha comigo e me ajude neste pensamento, meu pão de hoje.

O nosso cérebro possui informações sobre todo o nosso entorno, armazenadas desde o nosso nascimento. Qualquer evento ou objeto alvo de nossa atenção, receberá do cérebro imediatamente um OK, por assim dizer, algo como: sim, isso procede.

Se eu ofereço a você um objeto, você somente o pegará de minha mão se o seu cérebro der uma autorização. O disco rígido do seu cérebro processa a informação visual, e bate com a que ele tem armazenada e responde, sim, você conhece isso. E esse processo, claro, se dá num átimo de tempo, menos que isso, um nanotempo, nem sei se essa palavra existe.

Acredito que mesmo o cérebro de uma pessoa desinformada em questões de ciência, traz os conceitos de animal, vegetal ou mineral. Se oferecermos a uma pessoa um objeto que o seu cérebro não consiga encaixar numa dessas três categorias ela nem o toca!

Creio que se fôssemos expostos a esses monstros de filmes de Spielberg, cairíamos fulminados de susto. Nosso sistema nervoso não está preparado para ver uma imagem que o cérebro não identifica.

Aconteceu comigo: eu voltava de ônibus para casa, à janelinha, lá fora era crepúsculo, aquele lusco-fusco onde as figuras são difusas; o ônibus estava sobre um viaduto. Ao lado, naquela passarela destinada a pedestres, rapidamente vi um ser rastejante, como uma imensa centopéia escura, e o que seriam as patas daquele bicho se agitavam de forma desigual. Meu coração deu um pulo de susto. Creio que meu cérebro ficou procurando em seus registros o que era aquilo, e não batia com nenhuma informação armazenada. Tudo isso, claro, se passou num rápido espaço de tempo, menos de três segundos, eu diria. Até que forçando a vista, vi que era uma fila de meninas uniformizadas em trajes escuros, que levantavam e abaixavam os braços. Então meu cérebro se conformou com a imagem, e tudo se encaixou.

Também aconteceu no metrô. Havia no vagão que eu ocupava um rapaz portando uma prancha de surfe. Prancha de surfe no metrô não é imagem comum a cérebros paulistas. Meu cérebro talvez cansado do dia de trabalho ficou parado numa espécie de hiato de tempo pensando: o quê é isso? Até que finalmente tudo se encaixou, meu cérebro reconheceu o objeto, a sensação é de puro alívio. Tudo se dá num tempo incrivelmente rápido, mas é uma sensação ótima. Fico imaginando o que aconteceria se uma pessoa não conseguisse reconhecer um objeto ou situação, creio que seria algo de enlouquecer um ser humano.

Se você quiser me entender melhor, pense naquela sensação incômoda que é não lembrar um nome, uma palavra, um fato. A mente fica vazia, não fica?

Você me acompanhou até aqui? Então pense na seguinte situação: uma criança pequena, que ainda não tem conceito nenhum de sexualidade, sendo exposta a esse tipo de situação. Vendo ou vivenciando algo que seu cérebro não reconhece. Recebendo uma informação destacada de todo o seu contexto sensorial. Sem a maturidade necessária para apreender o que está sendo vivenciado ou visto.

Não seria de enlouquecer? Sim, e eu diria mais: um enlouquecimento pior do que o enlouquecimento do adulto, porque o adulto, recebendo uma informação descontextualizada, em algum lugar dentro de si sabe disso. A criança não tem nem o referencial para saber que está vendo algo anacrônico. É uma loucura vazia, que a acompanhará para sempre, irrecuperavelmente.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Que lindos...



Que lindos olhos, que lindos olhos tem você
que ainda hoje, que ainda hoje eu reparei.
Se eu reparasse, se eu reparasse há mais tempo
eu não amava, eu não amava quem amei.



Atenção blogueiro distraído, você ainda tem tempo de participar do meu sorteio. Clique
aqui e concorra.

 

domingo, 7 de dezembro de 2008

Segundo domingo do Advento

Em minha infância, nas madrugadas do dia 6 de janeiro, eu acordava num susto, com o coração batendo acelerado. Era um bumbo, um tambor dos grandes, tocando na alta madrugada. O que será isso Jesus? lentamente minha memória me acudia: ah! são os reis magos...

Depois do bumbo atacavam os violinos, que chamávamos de rabecas, uma sanfona, uma viola e creio que também uma flauta. Aquele som nas madrugadas tremendamente silenciosas e escuras daqueles tempos, seria hoje um daqueles presentes que eu pediria ao bom Deus, se eu pudesse pedir algo assim. Era o Reisado. Homens usando toscas máscaras de cartolina, rostos pintados como palhaços, chapéus cônicos, vestindo roupas coloridas, cantando a quatro vozes, pedindo licença para entrar nas casas.

Pedi aos meus pais que lembrassem o nome deles, mas foi em vão, eles não conseguiram lembrar. Aqueles homens todos eram do norte, da Bahia, isso meu pai lembrou, o líder da bandeira, chamado de Capitão tinha vindo de Feira de Santana, na Bahia, e já era por lá conhecido como capitão de um grupo famoso de reisado. Mas o nome deles não consegui apurar. Eram de fato famosos, cheguei a vê-los anos mais tarde na TV Cultura, infelizmente não anotei nome algum.

Não é uma festa paulista, mas São Paulo foi enormemente ocupada por nordestinos e nortistas, dentre eles o meu pai, que sabe-se Deus porque, marcou encontro comigo aqui em São Paulo. E esses retirantes trouxeram consigo toda sorte de festejos típicos de sua terra, entre eles o Reisado, ou a Folia de Reis.

Os Reis, ou a Bandeira como também eram chamados, ficavam na porta das casas pedindo permissão para entrar, e esse pedido era uma longa cantoria. Algo como oh senhor dono da casa abre a porta por favor viemos de longe queremos entrar ô de dentro ô de fora santo reis aqui chegou.

Fazia parte da tradição o dono da casa demorar-se para abrir a porta, então eles ficavam uns quinze minutos só pedindo para entrar. Coisa linda de se ouvir.

Aí acendiam a luz. Nova cantoria, dessa vez celebrando o fato de a luz ter sido acesa, uns quinze minutos de alegria por isso. Ói porta aberta, ói luz acesa ah ah!

Então eles entravam. A cantoria silenciava. O dono da casa apertava a mão do líder, era ele quem empunhava o estandarte com desenhos dourados, cheio de fitas pendentes multicoloridas. Todos beijavam as fitas.

Então o líder levava o estandarte aos cômodos da casa, para abençoá-la. Era a hora dos votos: - Bênção p’ra família! P’ro dono da casa! P’ra mulher! P’ros filhos! Muita paz, muita alegria, muita saúde! E tudo isso acompanhado de vivas.

Então aquela família servia um lanche, doces, bolos, frutas e refrescos, nada de bebidas, os reis não bebiam durante as funções, somente depois que tudo acabava, aí eles bebiam até cair.

Nova cantoria. Agradecimentos à família, e despedidas. Nóis vamos vortá aiai, a viagem é longa ai ai, até o ano que vem ai ai...

Tudo isso eu assistia da minha janela. Morria de vontade de chegar perto deles, de beijar a bandeira, de beijar as fitas, ah como eu queria que aquele estandarte entrasse em minha casa, quem sabe não seria a bênção que minha casa estava precisando? Por quê nós íamos tanto à igreja, cantávamos tantos hinos, líamos tanto a bíblia e não éramos felizes? Aquelas pessoas, que muitas vezes riam de nós, que riam dos crentes, ao receber e beijar as fitas daquele estandarte me pareciam tão mais felizes...

A bandeira não podia entrar em nossa casa. Éramos crentes. Outras coisas podiam entrar. Menos aquele belíssimo estandarte enfeitado de fitas.

- Fecha essa janela, sai daí, não fica olhando essas pessoas, isso é pecado, vem deitar!

Eu voltava para a cama, mas ficava ouvindo o reisado tocar em outra casa mais adiante, depois noutra mais adiante, cada vez mais longe, mais longe, mais longe...até cair no sono.

CONTINUA




 

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A última hospedaria




A Casa de Apoio Hospedaria de Cuidados Especiais da cidade de São Paulo foi criada pelo Hospital do Servidor Público Municipal da cidade. É um confortável casarão, que pertenceu aos antigos barões do café, localizado no bairro da Aclimação, nas beiradas do Parque que leva o mesmo nome. A casa tem capacidade para receber dez pacientes e seus familiares, e o seu objetivo é atender pessoas com doença terminal. A maioria com câncer, mas a hospedaria é aberta a doentes terminais de qualquer enfermidade.

Os hóspedes da casa não tem possibilidade de cura, mas ficam ali sem aquele tratamento invasivo e frio dos hospitais, recebendo na maior parte do tempo apenas medicação para a dor. O máximo de parafernália de hospital disponível é o oxigênio, e algum material para medicação endovenosa.

Na casa de apoio, a família recebe atendimento psicológico e é encorajada a participar do tratamento. Mesmo depois da morte do paciente, alguns familiares continuam visitando a equipe, com a qual criam vínculos duradouros. Não existe hierarquia no time formado por dois cozinheiros, seis auxiliares de enfermagem, um segurança, duas faxineiras, duas psicólogas, uma assistente social e quatro médicos. É normal encontrar os profissionais executando tarefas inesperadas, como a psicóloga que dá comida na boca do doente e o cozinheiro que ajuda a mover os pacientes da cama.

Foi para lá que levamos minha tia Amélia, diagnosticada com câncer em estado terminal, o que conseguimos em sua qualidade de antiga servidora pública. Os parentes podem ficar com o paciente pelo tempo que quiserem, e há permissão inclusive para animais domésticos. A casa é muito linda, rodeada de árvores, visitadas por enorme variedade de pássaros, muitos chegando a cantar nas janelas e beirais das sacadas. Ela ficou lá por seis meses.

Quando veio a notícia de sua morte, eu tinha voltado para casa para resolver uns assuntos domésticos. Era noite avançada, e a mim coube cuidar de toda a burocracia do sepultamento.

Após ter cuidado de tudo, fui à hospedaria aguardar o carro que a levaria a sua última morada. Embora fosse setembro, era uma noite fria. Ficamos, eu e a enfermeira noturna, dona Neli, na imensa sala de estar, daquelas antigas com lareira, teto alto com requintados lustres, saletas envidraçadas em toda volta, à beira de uma magnífica escada em caracol, daquelas que eu só tinha conhecido de filmes. Ela tricotava, eu aguardava em silêncio. No andar superior da casa, os pacientes dormiam. Aguardavam a morte. Nos fundos, minha tia morta. O vento balançava as venezianas, e ao lado do tique taque do relógio de parede, eram os únicos sons que se ouvia. Mesmo que eu viva cem anos, jamais irei esquecer desse momento: noite alta, duas mulheres em silêncio, doentes dormindo no pavimento superior, uma mulher morta dos fundos da casa, a única que não aguardava mais nada.

Chegou o carro; o funcionário embora experiente nessas questões precisou ser ajudado por nós duas. No silêncio da noite, introduzimos a defunta na urna e a urna no carro da prefeitura.

- A senhora deve vir comigo, não gaste dinheiro sem necessidade num táxi, disse o bom homem. Concordei. Após um demorado abraço de gratidão àquela boa enfermeira que tinha nos prestado seis meses de trabalho amigo e abnegado, entrei no carro com o condutor e a morta.

O motorista bem que tentou conversar comigo, mas deve ter percebido que eu não queria falar. Não era momento de falas, era momento de silêncio, e assim atravessamos a cidade. Mas a verdade é que eu vinha conversando mentalmente com minha tia.

Minha tia Amélia e eu tínhamos muito em comum: somos irritadiças, de pouca conversa, gostamos de silêncio e sossego. Ela certamente estaria irritada naquela situação onde seu corpo pertencia a outros. Tenho certeza de que ela teria preferido silêncio naquele momento, e que ela gostaria que seu funeral acabasse rápido, para todos irem logo embora e ela poder descansar.

- Falta pouco, Amélia, falta pouco, tenha só mais um pouquinho de paciência.

Chegamos. Alta madrugada. O experiente funcionário da prefeitura, ágil e expedito, já tratou de ir enfeitando o caixão, com uma eficiência de espantar. Mandei tirar os paramentos usados por católicos, sim, ela era crente, eu disse, e lá se foram as cruzes e os castiçais, titia não me perdoaria se eu os tivesse deixado.

O homem se foi, e eu fiquei só. O dia começava a despontar, e com ele uma magnífica cantoria de pássaros. Aquele cemitério possui uma belíssima diversidade de aves, até hoje costumo visitá-lo para me deleitar com aquela maravilha de cantos variados. Titia Amélia amava os animais e os passarinhos com paixão.

- Amélia, ouça a corruíra! Eu e ela conversávamos muito sobre esse passarinho, aqui por nossos lados o precursor da alvorada, amigo de nossas respectivas madrugadas de insônia, tínhamos a insônia também em comum. Depois de um tempo cantando sozinho, o seu canto então é abafado pela algaravia dos outros que iniciam o seu barulhento dia. Mas as lágrimas me desciam ao saber que aquela alegre cantoria de passarinhos titia não ouviria jamais. Aquele dia não nascia para ela.

Em breve chegariam os parentes, certamente ruidosos, falantes e nada cerimoniosos, e com certeza essa seria a parte que a deixaria mais irritada. Eles não saberiam se comportar com silêncio como ela tanto gostava, como explicar para eles que titia amava as vozes baixas, a discrição, os modos comportados...eles que jamais conviveram com ela e que jamais procuraram entendê-la...

- Falta pouco, Amélia, agora falta pouco mesmo, tenha só mais um pouquinho de paciência...

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O Asterix ou a arrumação do quarto

 Não existe nada mais aceso
que dois vaga-lumes
namorando
pertinho da fogueira


(Almir Correia, Poemas Malandrinhos)

Essa sou eu arrumando os antigos livros escolares do meu filho. Em minha nova condição de vagabunda tenho tempo de sobra para fazer absolutamente nada.

Para calcular, por exemplo. Todo esse dinheiro que gastei com livros para o menino hoje me daria um carro zerinho na garagem. Posso estar exagerando, mas passa perto.

Desisto da arrumação, é livro demais, cultura inútil demais.

“A prosódia trata da correta acentuação e entonação dos fonemas”.

Não tenho nada para fazer...

O Rubinho me presenteou com uma frase ótima, ele me mandou virar escritora. Divirto-me pra caramba com esses trocadilhos que as pessoas usam e não percebem. Deus fala pelos lábios do povo, a verdade nunca fica oculta, Jesus já dizia isso. O Rubinho sem querer falou a grande verdade, para ser escritora eu precisaria virar escritora.

Olha esta bíblia que dei para o menino no dia da sua confirmação, intacta. Já sei, vou ler esta bíblia, pela primeira vez com consciência, entendendo tudo, será a revelação do século.

Desisto no terceiro capítulo, não tem mais graça, tem um moço aí pela net recontando essa história, desvelando tudo, essas pessoas que encontram grandes verdades só fazem bem a elas mesmas. A gente fica é morrendo de vergonha, fora a inveja, puxa então era isso, tão fácil assim e eu não via...

Aí perde a graça...

Achei! Minhas revistinhas do Asterix!

O Asterix com sua turma no navio, vem chegando os inimigos para pegar o navio, sabem o que o Asterix faz? Afunda o navio. Estão vendo?! E ele é um guerreiro, toma poção mágica e tudo.

Olha essa do Ziraldo:

Então o papai, marinheiro de primeira viagem, chegou no escritório e disse:

- Nasceu meu filho! É homem! É a minha cara!

E o colega:

- Não fica triste não, rapaz. Não se preocupe. Tendo saúde é o que conta.

É por isso que eu sempre gostei de livros de gramática, trazem tirinhas, a gente não precisa ler livros inteiros para se distrair, agora vocês estão vendo de onde vem minha cultura.

E chega de arrumação.