sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A última hospedaria




A Casa de Apoio Hospedaria de Cuidados Especiais da cidade de São Paulo foi criada pelo Hospital do Servidor Público Municipal da cidade. É um confortável casarão, que pertenceu aos antigos barões do café, localizado no bairro da Aclimação, nas beiradas do Parque que leva o mesmo nome. A casa tem capacidade para receber dez pacientes e seus familiares, e o seu objetivo é atender pessoas com doença terminal. A maioria com câncer, mas a hospedaria é aberta a doentes terminais de qualquer enfermidade.

Os hóspedes da casa não tem possibilidade de cura, mas ficam ali sem aquele tratamento invasivo e frio dos hospitais, recebendo na maior parte do tempo apenas medicação para a dor. O máximo de parafernália de hospital disponível é o oxigênio, e algum material para medicação endovenosa.

Na casa de apoio, a família recebe atendimento psicológico e é encorajada a participar do tratamento. Mesmo depois da morte do paciente, alguns familiares continuam visitando a equipe, com a qual criam vínculos duradouros. Não existe hierarquia no time formado por dois cozinheiros, seis auxiliares de enfermagem, um segurança, duas faxineiras, duas psicólogas, uma assistente social e quatro médicos. É normal encontrar os profissionais executando tarefas inesperadas, como a psicóloga que dá comida na boca do doente e o cozinheiro que ajuda a mover os pacientes da cama.

Foi para lá que levamos minha tia Amélia, diagnosticada com câncer em estado terminal, o que conseguimos em sua qualidade de antiga servidora pública. Os parentes podem ficar com o paciente pelo tempo que quiserem, e há permissão inclusive para animais domésticos. A casa é muito linda, rodeada de árvores, visitadas por enorme variedade de pássaros, muitos chegando a cantar nas janelas e beirais das sacadas. Ela ficou lá por seis meses.

Quando veio a notícia de sua morte, eu tinha voltado para casa para resolver uns assuntos domésticos. Era noite avançada, e a mim coube cuidar de toda a burocracia do sepultamento.

Após ter cuidado de tudo, fui à hospedaria aguardar o carro que a levaria a sua última morada. Embora fosse setembro, era uma noite fria. Ficamos, eu e a enfermeira noturna, dona Neli, na imensa sala de estar, daquelas antigas com lareira, teto alto com requintados lustres, saletas envidraçadas em toda volta, à beira de uma magnífica escada em caracol, daquelas que eu só tinha conhecido de filmes. Ela tricotava, eu aguardava em silêncio. No andar superior da casa, os pacientes dormiam. Aguardavam a morte. Nos fundos, minha tia morta. O vento balançava as venezianas, e ao lado do tique taque do relógio de parede, eram os únicos sons que se ouvia. Mesmo que eu viva cem anos, jamais irei esquecer desse momento: noite alta, duas mulheres em silêncio, doentes dormindo no pavimento superior, uma mulher morta dos fundos da casa, a única que não aguardava mais nada.

Chegou o carro; o funcionário embora experiente nessas questões precisou ser ajudado por nós duas. No silêncio da noite, introduzimos a defunta na urna e a urna no carro da prefeitura.

- A senhora deve vir comigo, não gaste dinheiro sem necessidade num táxi, disse o bom homem. Concordei. Após um demorado abraço de gratidão àquela boa enfermeira que tinha nos prestado seis meses de trabalho amigo e abnegado, entrei no carro com o condutor e a morta.

O motorista bem que tentou conversar comigo, mas deve ter percebido que eu não queria falar. Não era momento de falas, era momento de silêncio, e assim atravessamos a cidade. Mas a verdade é que eu vinha conversando mentalmente com minha tia.

Minha tia Amélia e eu tínhamos muito em comum: somos irritadiças, de pouca conversa, gostamos de silêncio e sossego. Ela certamente estaria irritada naquela situação onde seu corpo pertencia a outros. Tenho certeza de que ela teria preferido silêncio naquele momento, e que ela gostaria que seu funeral acabasse rápido, para todos irem logo embora e ela poder descansar.

- Falta pouco, Amélia, falta pouco, tenha só mais um pouquinho de paciência.

Chegamos. Alta madrugada. O experiente funcionário da prefeitura, ágil e expedito, já tratou de ir enfeitando o caixão, com uma eficiência de espantar. Mandei tirar os paramentos usados por católicos, sim, ela era crente, eu disse, e lá se foram as cruzes e os castiçais, titia não me perdoaria se eu os tivesse deixado.

O homem se foi, e eu fiquei só. O dia começava a despontar, e com ele uma magnífica cantoria de pássaros. Aquele cemitério possui uma belíssima diversidade de aves, até hoje costumo visitá-lo para me deleitar com aquela maravilha de cantos variados. Titia Amélia amava os animais e os passarinhos com paixão.

- Amélia, ouça a corruíra! Eu e ela conversávamos muito sobre esse passarinho, aqui por nossos lados o precursor da alvorada, amigo de nossas respectivas madrugadas de insônia, tínhamos a insônia também em comum. Depois de um tempo cantando sozinho, o seu canto então é abafado pela algaravia dos outros que iniciam o seu barulhento dia. Mas as lágrimas me desciam ao saber que aquela alegre cantoria de passarinhos titia não ouviria jamais. Aquele dia não nascia para ela.

Em breve chegariam os parentes, certamente ruidosos, falantes e nada cerimoniosos, e com certeza essa seria a parte que a deixaria mais irritada. Eles não saberiam se comportar com silêncio como ela tanto gostava, como explicar para eles que titia amava as vozes baixas, a discrição, os modos comportados...eles que jamais conviveram com ela e que jamais procuraram entendê-la...

- Falta pouco, Amélia, agora falta pouco mesmo, tenha só mais um pouquinho de paciência...