Em minha infância, nas madrugadas do dia 6 de janeiro, eu acordava num susto, com o coração batendo acelerado. Era um bumbo, um tambor dos grandes, tocando na alta madrugada. O que será isso Jesus? lentamente minha memória me acudia: ah! são os reis magos...
Depois do bumbo atacavam os violinos, que chamávamos de rabecas, uma sanfona, uma viola e creio que também uma flauta. Aquele som nas madrugadas tremendamente silenciosas e escuras daqueles tempos, seria hoje um daqueles presentes que eu pediria ao bom Deus, se eu pudesse pedir algo assim. Era o Reisado. Homens usando toscas máscaras de cartolina, rostos pintados como palhaços, chapéus cônicos, vestindo roupas coloridas, cantando a quatro vozes, pedindo licença para entrar nas casas.
Pedi aos meus pais que lembrassem o nome deles, mas foi em vão, eles não conseguiram lembrar. Aqueles homens todos eram do norte, da Bahia, isso meu pai lembrou, o líder da bandeira, chamado de Capitão tinha vindo de Feira de Santana, na Bahia, e já era por lá conhecido como capitão de um grupo famoso de reisado. Mas o nome deles não consegui apurar. Eram de fato famosos, cheguei a vê-los anos mais tarde na TV Cultura, infelizmente não anotei nome algum.
Não é uma festa paulista, mas São Paulo foi enormemente ocupada por nordestinos e nortistas, dentre eles o meu pai, que sabe-se Deus porque, marcou encontro comigo aqui em São Paulo. E esses retirantes trouxeram consigo toda sorte de festejos típicos de sua terra, entre eles o Reisado, ou a Folia de Reis.
Os Reis, ou a Bandeira como também eram chamados, ficavam na porta das casas pedindo permissão para entrar, e esse pedido era uma longa cantoria. Algo como oh senhor dono da casa abre a porta por favor viemos de longe queremos entrar ô de dentro ô de fora santo reis aqui chegou.
Fazia parte da tradição o dono da casa demorar-se para abrir a porta, então eles ficavam uns quinze minutos só pedindo para entrar. Coisa linda de se ouvir.
Aí acendiam a luz. Nova cantoria, dessa vez celebrando o fato de a luz ter sido acesa, uns quinze minutos de alegria por isso. Ói porta aberta, ói luz acesa ah ah!
Então eles entravam. A cantoria silenciava. O dono da casa apertava a mão do líder, era ele quem empunhava o estandarte com desenhos dourados, cheio de fitas pendentes multicoloridas. Todos beijavam as fitas.
Então o líder levava o estandarte aos cômodos da casa, para abençoá-la. Era a hora dos votos: - Bênção p’ra família! P’ro dono da casa! P’ra mulher! P’ros filhos! Muita paz, muita alegria, muita saúde! E tudo isso acompanhado de vivas.
Então aquela família servia um lanche, doces, bolos, frutas e refrescos, nada de bebidas, os reis não bebiam durante as funções, somente depois que tudo acabava, aí eles bebiam até cair.
Nova cantoria. Agradecimentos à família, e despedidas. Nóis vamos vortá aiai, a viagem é longa ai ai, até o ano que vem ai ai...
Tudo isso eu assistia da minha janela. Morria de vontade de chegar perto deles, de beijar a bandeira, de beijar as fitas, ah como eu queria que aquele estandarte entrasse em minha casa, quem sabe não seria a bênção que minha casa estava precisando? Por quê nós íamos tanto à igreja, cantávamos tantos hinos, líamos tanto a bíblia e não éramos felizes? Aquelas pessoas, que muitas vezes riam de nós, que riam dos crentes, ao receber e beijar as fitas daquele estandarte me pareciam tão mais felizes...
A bandeira não podia entrar em nossa casa. Éramos crentes. Outras coisas podiam entrar. Menos aquele belíssimo estandarte enfeitado de fitas.
- Fecha essa janela, sai daí, não fica olhando essas pessoas, isso é pecado, vem deitar!
Eu voltava para a cama, mas ficava ouvindo o reisado tocar em outra casa mais adiante, depois noutra mais adiante, cada vez mais longe, mais longe, mais longe...até cair no sono.
CONTINUA
Depois do bumbo atacavam os violinos, que chamávamos de rabecas, uma sanfona, uma viola e creio que também uma flauta. Aquele som nas madrugadas tremendamente silenciosas e escuras daqueles tempos, seria hoje um daqueles presentes que eu pediria ao bom Deus, se eu pudesse pedir algo assim. Era o Reisado. Homens usando toscas máscaras de cartolina, rostos pintados como palhaços, chapéus cônicos, vestindo roupas coloridas, cantando a quatro vozes, pedindo licença para entrar nas casas.
Pedi aos meus pais que lembrassem o nome deles, mas foi em vão, eles não conseguiram lembrar. Aqueles homens todos eram do norte, da Bahia, isso meu pai lembrou, o líder da bandeira, chamado de Capitão tinha vindo de Feira de Santana, na Bahia, e já era por lá conhecido como capitão de um grupo famoso de reisado. Mas o nome deles não consegui apurar. Eram de fato famosos, cheguei a vê-los anos mais tarde na TV Cultura, infelizmente não anotei nome algum.
Não é uma festa paulista, mas São Paulo foi enormemente ocupada por nordestinos e nortistas, dentre eles o meu pai, que sabe-se Deus porque, marcou encontro comigo aqui em São Paulo. E esses retirantes trouxeram consigo toda sorte de festejos típicos de sua terra, entre eles o Reisado, ou a Folia de Reis.
Os Reis, ou a Bandeira como também eram chamados, ficavam na porta das casas pedindo permissão para entrar, e esse pedido era uma longa cantoria. Algo como oh senhor dono da casa abre a porta por favor viemos de longe queremos entrar ô de dentro ô de fora santo reis aqui chegou.
Fazia parte da tradição o dono da casa demorar-se para abrir a porta, então eles ficavam uns quinze minutos só pedindo para entrar. Coisa linda de se ouvir.
Aí acendiam a luz. Nova cantoria, dessa vez celebrando o fato de a luz ter sido acesa, uns quinze minutos de alegria por isso. Ói porta aberta, ói luz acesa ah ah!
Então eles entravam. A cantoria silenciava. O dono da casa apertava a mão do líder, era ele quem empunhava o estandarte com desenhos dourados, cheio de fitas pendentes multicoloridas. Todos beijavam as fitas.
Então o líder levava o estandarte aos cômodos da casa, para abençoá-la. Era a hora dos votos: - Bênção p’ra família! P’ro dono da casa! P’ra mulher! P’ros filhos! Muita paz, muita alegria, muita saúde! E tudo isso acompanhado de vivas.
Então aquela família servia um lanche, doces, bolos, frutas e refrescos, nada de bebidas, os reis não bebiam durante as funções, somente depois que tudo acabava, aí eles bebiam até cair.
Nova cantoria. Agradecimentos à família, e despedidas. Nóis vamos vortá aiai, a viagem é longa ai ai, até o ano que vem ai ai...
Tudo isso eu assistia da minha janela. Morria de vontade de chegar perto deles, de beijar a bandeira, de beijar as fitas, ah como eu queria que aquele estandarte entrasse em minha casa, quem sabe não seria a bênção que minha casa estava precisando? Por quê nós íamos tanto à igreja, cantávamos tantos hinos, líamos tanto a bíblia e não éramos felizes? Aquelas pessoas, que muitas vezes riam de nós, que riam dos crentes, ao receber e beijar as fitas daquele estandarte me pareciam tão mais felizes...
A bandeira não podia entrar em nossa casa. Éramos crentes. Outras coisas podiam entrar. Menos aquele belíssimo estandarte enfeitado de fitas.
- Fecha essa janela, sai daí, não fica olhando essas pessoas, isso é pecado, vem deitar!
Eu voltava para a cama, mas ficava ouvindo o reisado tocar em outra casa mais adiante, depois noutra mais adiante, cada vez mais longe, mais longe, mais longe...até cair no sono.
CONTINUA