segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Eu tive um cliente chinês

Tive nos meus tempos de gerente de banco um cliente chinês que se apresentava como Lúcio, até o dia em que descobri que seu verdadeiro nome era Kuo. Aí eu espalhei a notícia para a rapaziada, e ele virou nossa vítima.

Pela pronúncia natural da língua portuguesa – ou pela nossa má vontade – era impossível falar K-u-o. Então por aí vocês já podem imaginar o teor das brincadeiras.

Era só ele adentrar no recinto que a gozação começava:

- Pessoal, passem o Kuo para a frente. Rápido, pessoal, o Kuo é apressado. Gente, não esqueçam de conferir direitinho as coisas do Kuo.

Ele ria, e falava: não pessoal, não, é Lúcio. Mas não ligava, e a brincadeira corria solta.

 Tremendamente pródigo, ele sempre deixava pago para nós uma rodada de cerveja. Uma vez ele nos mandou ir ao Bar da Bolsa, que tinha esse nome por ficar no prédio da Bolsa de Cereais. Disse que fôssemos lá e bebêssemos a vontade, que ele iria mais tarde acertar a conta. Mas ele demorava, e as gozações só aumentavam:

- Puxa, o Kuo deu pra trás...

- Isso que deu confiar no Kuo da Bete.

E desce cerveja, e drinkes e comestíveis, entre muitas gargalhadas. A conta começava a ficar perigosamente alta. Mas eis que chega o Kuo, estivera trabalhando até aquela hora.

Sempre sorrindo, pagou a vultosa conta. Nessa hora ele virou Lúcio! Garçon, este é o Lúcio! O Kuo? O Kuo ficou pra trás... ele ria, ria gostosamente.

O Kuo tinha profundas rugas na face, eu creio que de tanto rir. Nunca o vi mal humorado, sempre trabalhando, conferindo mercadorias, empilhando caixas, atendendo fregueses, ele era atacadista de bolsas, cintos e carteiras. Trabalhava muito e sorria muito.

Só reclamava quanto ao nome, mas sem parar de rir:

- Não, não, pessoal, é Lúcio!...


A nossa agência era pegada com o estabelecimento dele, e funcionava para ele e seus empregados como um anexo. Era comum seus empregados a até esposa e filhos virem buscar dinheiro com a gente:

- Patrão mandou pegar cem cruzados. Era o nome do dinheiro na época...

- Cinqüenta, rapidinho...

- Me dá dinheiro para o lanche? Eram os filhos.

- Precisa dinheiro para a feira. A esposa, para nós os piadistas, a mulher do Kuo.

No final do dia, sempre sorrindo, ele vinha fazer um cheque para acertar a pendência. Isso quando o saque não era feito a descoberto: pagávamos por conta dos depósitos que ele faria no final do dia.

Mas às vezes o Kuo demorava.

Todo dia, na hora do fechamento, era certo ouvir alguém perguntar: Kuo já veio? Às vezes alguém era escalado, sempre na piada, “para ir atrás do Kuo”.

E ele vinha, sempre rindo, nunca conferindo nada, nunca desconfiando, acertando a pendência na quantia que a gente apresentava, e ainda arrematando:

- Se vocês tiverem diferença, falem comigo.

Não é raro bancários terem diferenças no caixa, e ele nos socorreu em algumas vezes, sem nem querer ouvir muito a explicação.

- Esse sujeito age assim porque está ilegal no país, para comprar os serviços de vocês! Eram os gerentes invejosos. Invejosos e desonestos, adorariam ter a confiança de um cliente assim para poderem enganá-lo à vontade. Mas eu e nenhum dos meus rapazes jamais o enganamos. Nossas contas com ele eram exatas.

Eu muitas vezes trocava dólares para ele, isso porque na outra ponta, eu tinha clientes que se interessavam em adquiri-los ao câmbio negro. Era muito comum naqueles tempos os gerentes de banco prestarem serviços dessa natureza. Quando eu voltava com a moeda brasileira, ele nunca perguntava qual tinha sido a cotação, qual era o montante e muito menos conferia. Sempre rindo, enfiava o dinheiro no bolso, não sem antes dar alguma coisa pra mim:

- Compra blusa bonita, ele dizia. Eu na verdade dividia com a rapaziada, aumentando ainda mais a inveja dos que ficavam fora do esquema. Ele confiava apenas em mim e nos rapazes Caixas.



Essa história não tem final feliz, ele morreu. Foi dar um jeito como eletricista, aconteceu o desastre, eu de minha mesa ouvi o barulho da explosão. Quando cheguei, ele já estava sendo colocado num carro, eu o vi de longe, já morto.

Com sua morte, ficou uma pendência em sua conta.

Os pessimistas, os maldosos, os invejosos de plantão, não poderiam deixar de passar a ocasião de fazer uma piadinha de humor negro: O Kuo deixou a Bete na mão. Para falar a verdade, as piadinhas foram mais pesadas, mas fiquemos só com esta.

Eu, porém, mantive a calma. Não fui procurar sua esposa sobre o assunto, não teria coragem de abordá-la com questões de dinheiro numa hora dessas. Eu sabia que corria riscos desde o início, e os riscos então seriam meus, não se pode ganhar sempre. Ignorando a zombaria dos colegas, permaneci serena.


Dentro de poucos dias, o pai dele chegou da China. Um empregado veio me chamar.

Entrei no estabelecimento, e levei as mãos ao coração, achei que ele entenderia minha expressão de dor. O idoso compreendeu, e imitou meu gesto.

Em seguida, o homem tirou do bolso uma carteira recheada de dólares, colocou em minhas mãos e disse:

- How much?

Fiquei entre emocionada e assustada com tanta confiança vinda de um estrangeiro. Teria o pai ouvido nossa história lá na distante China? Abri a carteira e pincei de lá as notas que correspondiam à pendência. Repeti o gesto da entrada, e saí. Nunca mais o vi.

- Você pegou pouco, sua boba. Um invejoso.

- Eu teria enchido a mão de dólares. Outro invejoso.

Tenho certeza de que vocês teriam feito isso, seus sanguessugas, imbecis, panacas. Mas com esse pensamento aproveitador, oportunista, velhaco, vocês nunca teriam caído na confiança do meu amigo Kuo.

- Lúcio, pessoal, Lúcio.