quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A compota

Num daqueles filmes feitos para televisão, que a gente nunca mais irá lembrar o nome muito menos os atores, assisti a uma história de um sujeito que num acidente ficou totalmente paralítico. Só conseguia mover um pouco uma das mãos e os músculos da face. Foi então que uma assistente social veio confortá-lo, com a idéia de que ele poderia desenvolver novas atividades, como por exemplo pintar quadros com a boca, ou escrever sua biografia por ditados.

- Tenho alguns pacientes assim, ela disse.

O sujeito respondeu com um magnífico berro:

- Eu sou arquiteto! Minha vida somente fará sentido se eu puder fazer casas e edifícios como antes, não estou interessado em pintar telas, não quero escrever histórias!!!

O mínimo que aquele infeliz desejava para sua vida era a sua vida de volta como ela era, como ele sabia – e gostava de vivê-la. O mínimo que ele queria era a parte de dignidade a que tinha direito, exercendo as suas escolhas. Será que é pedir muito? Era um filme sobre eutanásia, não lembro como terminava.

- Bete, você já pensou em pintar pratinhos de porcelana? Olha, uma tia de uma prima de uma amiga de uma cunhada está ganhando um bom dinheiro fazendo fraldas geriátricas. E se você fizesse compotas? Perfumes? Panos de prato com biquinhos bordados escrito Deus é fiel?

Os conselhos chovem.

Não! Admiro muito mas muito mesmo quem sabe fazer artesanato. Geléia caseira. Vender Avon e Natura, mas não, não é minha praia, e estou muito cansada para recomeçar minha vida desta forma.

Aí a pessoa me olha de alto a baixo com cara de desprezo como a dizer: - Humpf...no mínimo não está precisando, porque se estivesse...Na verdade elas dizem... para os outros. E os outros vem contar pra gente.

Eu não gosto de ficar contando minha história pra vizinhos e parentes bestas, porque não gosto de me expor, mas eu entendo e entendo muito bem o que é me trocar por qualquer preço.

Quando perdi um bom emprego, e tinha um filho pequeno num bom colégio, fui bater à porta da Tesouraria pedindo uma bolsa de estudos para ele. Era um colégio de freiras, elas até eram sensíveis, pródigas mesmo, mas tinha passado o prazo de requisições de bolsa. Então elas começaram a me enrolar, me enrolaram uma semana, duas, três...na terceira semana eu entrei na sala da tesoureira e disse:

- A senhora teria algum banheiro, corredores, vidraças para eu lavar? Eu não me importo em trabalhar pelo estudo do meu filho.

- Imagine, dona Elizabeth...não diga isso, falou toda delicada a tesoureira. Verei o que posso fazer.

Naquele mesmo dia recebi sua ligação de volta, o colégio deferiu uma bolsa de estudos de cem por cento, o que só era deferido a filhos de funcionários. Ela viu que eu estava falando sério.

Tenho muitas dessas histórias para contar, não, não venham me falar que sou uma madame. Apenas conheço meus limites.

Admiro demais essas histórias de pessoas que recomeçam vendendo limões na feira. Que compram alho na avenida Mercúrio, soltam todos os dentinhos, colocam em saquinhos plásticos e ficam num tabuleiro vendendo em qualquer esquina. Lindo!

Aplaudo em pé as senhorinhas de setenta anos que exercem prostituição na Praça da República, isso sim é que é coragem, agüentar velhos babões, isso sim é raça, força, vontade de viver.

Conheci uns rapazes que iam na serra da Cantareira buscar bromélias e samambaias, que vendiam nas calçadas, isso não é valente demais? Hoje são ricos.

Pois é, a Bete não tem forças, coragem, valentia, a Bete morreria de vergonha de ficar num tabuleiro vendendo cocada. A Bete não tem cara de pau para empurrar às amigas panos de prato com aqueles ridículos bicos de crochê. Pratinhos do senhor é meu pastor nada me faltará. Vidros de maionese com compota, aquelas tampinhas enfeitadas de rendinhas, passamanarias e lacinhos. Bijuterias com arremates tortos. Imãs de geladeira que ninguém precisa mais. Bichinhos de porcelana meu Deus, mais um, onde eu coloco esse poodle de lacinhos?

Para essas situações eu sou covarde. Sou valente sim, mas minha valentia é outra.