quinta-feira, 2 de julho de 2009

A história de Kim




A Praça da Sé, que é onde se localiza o marco zero da cidade de São Paulo, foi para mim também um marco, um marco de minha entrada no mundo dos adultos. Isso porque minha primeira ida sozinha ao Centro de São Paulo, que naqueles tempos chamávamos de “ir à cidade”, foi uma ida à Praça da Sé. Fiquei orgulhosa de mim mesma, e realizei por lá uma série de buscas curiosas, realizo até hoje, tenho uma porção de histórias para contar sobre meus passeios pelo centro da cidade. Mas vão ficar para outra vez, porque agora eu quero falar da coreana que distribuía folhetos.

Eu tinha quinze anos, e trabalhava no bairro da Liberdade, chegava bem cedinho ao centro de São Paulo. Ela, a coreana que distribuía folhetos, já estava ali, pelas proximidades da Praça Clóvis Bevilácqua. Essa praça não existe mais, quero dizer, ainda há uma plaqueta lá, indicativa de uma praça, mas isso creio que só serve para confundir pessoas, pois o que sobrou dela foi uma única ruela. A maior parte das edificações dali foram demolidas, por ocasião da construção do metrô Sé. Houve ali inclusive a implosão de um edifício de vinte andares, de nome Mendes Caldeira, que segundo me recordo, foi a primeira implosão de magnitude realizada no Brasil. Com isso a Praça Clóvis, como a chamávamos, foi incorporada pela Praça da Sé.

Mas naqueles tempos a praça existia, e a moça dos folhetos ficava por lá. Baixinha, rápida, olhos vivos, era ágil para nos enfiar os folhetos pelas mãos, isso mesmo, ela não estendia os folhetos, ela os colocava em nossas mãos, sempre dizendo com seu péssimo português:

- Êh Djesuuuus!!

Creio que era só isso que ela sabia falar. E antes que a gente dissesse boca é minha, já estava com o folheto na mão. Eu detesto pegar coisas que me dão nas ruas, mas folhetos religiosos eu nunca consegui recusar, mesmo que fosse para repassá-los para alguém em seguida – nunca tive coragem também de jogá-los fora. Eu costumo deixá-los nos bancos da condução, ou sobre balcões de bancos e estabelecimentos.

E assim transcorriam quase todas as minhas manhãs, pois com poucas ausências, ela estava sempre lá, a pescar pecadores bem cedo, indo para o trabalho:

- Êh Djesuuuuus!

Então minha vida tomou outros rumos, que me levaram para longe da Praça da Sé pelas manhãs. Mas como São Paulo é minha cidade, sempre existiam ocasiões em que eu voltava por aqueles lados, e era recebida por quem? Pela coreana rápida, ágil, sempre sorridente, com os seus folhetos:

- Êh Djesuuuus!

Um detalhe – sempre pelas manhãs, logo cedo. Não consigo entender o porquê, mas esse era o seu horário predileto, ou quem sabe ela tinha outros pontos de captação de pecadores pela cidade.

E assim os anos se passaram. Nos anos oitenta, ela estava lá. Nos anos noventa, ela estava lá. Na passagem do século, ela estava lá.

-Êh Djesuuuus!

Foi há um ano atrás que a vi pela última vez. Ela já não estava andando de um lado para o outro da praça, mas parada na entrada do metrô Sé. Bem mais gordinha, rostinho contendo rugas, olhos já embaçados pela idade mas ainda vivos, cabelos brancos, o sorriso de sempre, com sua mãozinha pintalgada de manchas de senilidade, enfiou nas minhas o folhetinho:

- Êh Djesuuuus!

Não a vi mais. Antes de fechar este texto, dei uma perguntada na praça. Todos disseram a mesma coisa: - É mesmo, ela sumiu. Tive de perguntar para umas seis pessoas para descobrir seu nome, até que descobri – chamava-se Kim. Um comerciante de lá me disse: - Talvez tenha morrido, ou voltado ao seu país...

Espero que Kim tenha voltado ao seu país, para um merecido descanso. Mas se ela morreu, ou enfim, quando morrer, eu tenho uma imagem desenhada especialmente para ela, é assim:

No momento de sua morte, à sua cabeceira, em seus últimos instantes, Jesus chega e lhe estende não um folheto, mas a mão, dizendo:

- Êh Djesuuuuus!

Ou outra, melhor ainda, a Kim merece várias versões, tanto que se você tiver uma, pode ir desenhando aí. É assim: Kim entra na Glória, e é recebida por um corredor de anjos, interminável, duas longas filas a perder de vista. Todos luzindo em suas melhores fardas, batendo continência e dizendo a uma só voz:

- Djesuuuus, êh a Kiiiiiiim!