sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

De nihilo nihil

 Foi em meados dos anos noventa que eu cometi a insanidade de entrar para um curso de latim.

- Latim? diziam os amigos, você está maluca? Para conversar com quem, com Julio Cesar no Centro Espírita?

Lá vai um conselho, deixe os amigos fora de suas maluquices, eles nunca entenderão mesmo, e ainda estarão prontinhos a criticar se algo der errado: -“eu não disse?!”

Mas eu fui, estudar latim. O método do professor Henrique Muraschco era inusitado: -exponham-se ao texto, ele dizia. Vocês sabem muito mais latim do que pensam. Analisem, sintam as palavras, reajam a elas, e verão do que estou falando.

Eram duas aulas por semana. Em uma delas, íamos somente os alunos, sub a supervisão de um aluno mais adiantado. Líamos e tentávamos entender o texto com o mínimo de ajuda de gramática ou dicionário, uma tentativa de interpretação a seco, por assim dizer. O professor João, o tal aluno assistente, nos dirigia nesse esforço. Na outra aula, o professor Henrique entrava com os conceitos gramaticais, as conjugações, terríveis, sofri muito com os genitivos, os ablativos, o entender as frases de trás para a frente, dificílimo. Sempre trabalhávamos um texto histórico. Começamos com as guerras gálicas. Depois enfrentamos os discursos dos imperadores e legisladores romanos, mas também nos distraímos com as aventuras de Asterix. Por minha insistência, também traduzimos partes da lindíssima ópera cênica Carmina Burana. Pronuncia-se cármina, com acento no a.

Era muito bom.

E o professor Henrique batia sempre nessa tecla: vocês sabem latim muito mais do que pensam.

Com ele aprendi a me interessar pelo significado intrínseco das palavras, sua história, a etimologia. Curto até hoje, vivo me perguntando o que cada palavra de fato significa, e me esforço para descobrir sem ajuda de um dicionário etimológico, até porque não tenho um, são caros. O professor tinha um que era do tamanho da mesa, eu daria tudo para ter um exemplar daqueles, acho que não sairia de perto dele.

- O que significa dizer que uma pessoa teve êxito, ele dizia? Pois exitus significa entre outras coisas saída. Ter êxito não é encontrar uma saída para uma situação?

E não é que é mesmo? eu me dizia...

Mas ele analisava também as palavras do nosso idioma. - Dispêndio, ele falava. Dispêndio é gasto, gastar, mas antigamente as pessoas penduravam salames, chouriços, carnes salgadas, em lugares altos da cozinha, e quando iam preparar des-penduravam aqueles alimentos, despendiam, portanto, para consumir.

- Solução. Fulano encontrou uma solução. Significa que ele dissolveu uma substância dura numa substância fluida, diluindo aquela dureza, tornando-a mais tratável. Óbvio, não é? Mas a gente, eu pelo menos, sempre peguei as palavras pela superfície, então passei a adorar me aprofundar nelas.

Com isso as palavras iam como que crescendo, e eu gostava muito de ver meu universo assim ampliado. O que eu sentia era que algo dentro de mim ampliava também, não sei se me entendem.

- Mercearia. Vem de mercans, mercar, comerciar. Mas também usamos a palavra mercê como favor, crédito, não usamos? Pois antigamente as mercearias eram locais onde comprávamos sem pagar no ato...nesse ponto da aula todos interrompiam para contar das antigas cadernetas de compras, no meu tempo mesmo se usava...

- Mercearia portanto é também sinônimo de lugar onde se concede crédito, favor.

E assim o professor ia conduzindo minha mente por mares nunca dantes navegados. Passei a prestar uma enorme atenção a todas as palavras que ouvia, e a perceber que a grande maioria delas já trazia nelas mesmas o seu significado. E fui entendendo que as palavras nasciam das necessidades das pessoas através dos séculos, nasciam de situações triviais. Babel começou a ficar mais clara para mim.

Falando em Babel, ele dizia que a palavra bárbaro nada mais era do que uma onomatopéia; quando um povo não entendia o que dizia o outro povo, diziam que ouviam “bá-bá-bá”. E isso já abria um gancho para ele falar que uma grande maioria das palavras trazia imitações de sons da natureza e das coisas, o que era muito interessante. Procure descobrir quais são, você irá gostar de saber.

O interessante é que ele não ficava na erudição, ele ia ao falar da gente simples para nos explicar os caminhos percorridos pelo saber, e era fantástico. Índice, ele falava. Quem aqui for de sítio saberá que nunca tiramos todos os ovos de um ninho de galinha, precisamos deixar sempre um, para que ela saiba que precisa voltar a botar ali. Como se chama esse ovo que se deixa? Eu sabia, era “indeis”, aprendi com minha avó. E ele sorria...estão vendo? Indeis, índice...a língua caminha, a língua encontra os seus próprios meios...

E para você que conhece alguma pessoa escrupulosa que abomina palavrões, diga a ela que passe a evitar as palavras acuar, cueiros, cuecas, pelos motivos que eu acho que você já me entendeu. Um dia o professor nos deu uma aula genial sobre palavrões.

Tentando traduzir os textos na forçada, muitas vezes encontrávamos a palavra esclarecedora não no idioma português, mas no inglês, para meu espanto, como no caso do próprio exitus, que remete ao exit inglês, que para eles é saída, o que ampliava muito mais a compreensão, conforme já falei acima. Curiosamente, exitus também pode ser morte.

O mouse inglês é quase uma palavra latina, vem de mus, rato.

O que posso dizer é que o professor Henrique acendeu várias luminárias em meu saber, foi bom demais conhecê-lo.

Mas na verdade comecei a escrever para contar uma certa experiência que tive numa dessas traduções, mas noto que o texto foi alongando. Então vou parar por aqui, voltem amanhã que eu arremato.

Um esclarecimento que estou devendo desde o início do ano. Por pura preguiça, ainda não me atualizei quanto à nova ortografia, peço desculpas, acho que andei cometendo uns erros de acentuação aqui e ali. Errare humanum est. Prometo me atualizar, é que preciso usar um restinho de farinha que ainda tenho.