quarta-feira, 8 de abril de 2009

O Velho Chico e eu


Puxe uma cadeira que eu vou lhe servir café com um pão quentinho que acabo de fazer e que certamente irá lhe agradar muito. É uma história bacaninha que eu estava guardando para um momento de crise, e acredite, este blogue está num sério momento de crise.

Foi quando eu ganhei um rio de presente, sim, isso mesmo que você ouviu, eu ganhei um rio de presente, você já está começando a se interessar não é?

Eu tinha dezoito anos, e a protagonista comigo nessa história se chamava Arlete Pedrosa Lima, uma colega de ginásio, ela era mais velha que eu. Ela era mais velha, porém estudávamos juntas, o que significava que ela tinha repetido de ano. Mas isso estava longe de ser um motivo de vergonha, as moças repetentes tinham status, e nós, as novatas sentíamos por elas um misto de admiração e respeito. É que elas já sabiam o jeito de pegar na coisa, sabiam de detalhes do ano letivo que nós as novatas não sabíamos. A Arlete era extremamente inteligente, nem entendo como ela repetira de ano. Era dessas moças com papo cabeça, respostas cultas, tudo o que eu queria ser e não era. Fiquei sua amiga.

Mas ela se casou e foi embora para uma cidade chamada Januária, e de lá passou a me escrever. Numa dessas cartas ela me disse: Betinha, venha me visitar. Eu aos dezoito anos era uma jovem muito independente, simplesmente comuniquei a família, fiz a mala e fui, e aqui o detalhe:

Dormi nas aulas de geografia. E nas de história. E de português, e de inglês e matemática, dormi, enfim. Naquele tempo eu já era bipolar, só que não diagnosticada. Não conseguia prestar atenção em nada, e só passava de ano porque tinha uma incrível velocidade de leitura. Às vésperas da prova pegava o caderno de alguém, e aprendia o suficiente para fazer a prova, para logo em seguida esquecer.

Estou contando isso, porque ao fazer a mala e partir para Januária, eu não cheguei a cogitar das distâncias, não olhei em nenhum mapa, não sabia onde a cidade ficava e nem perdi meu tempo com isso. Achava que era logo ali. Fui.

E dá-lhe estrada. Uma noite. Um dia. Outra noite. E eu tranqüila como só poderia ser tranqüila uma jovem completamente sem juízo.

No meio da última noite, todos os passageiros desceram para o que me pareceu ser uma parada, mas eu resolvi ficar no ônibus. Foi quando uma senhora me chamou:

- Ei, paulista! Você não vai descer para ver o rio?

- Rio?! Pois é. Quem dorme nas aulas de geografia não fica sabendo que no caminho para Januária existe nada mais nada menos do que o rio São Francisco. Vagamente me lembrei de algo como “rio da unidade nacional, aquele que nasce e deságua totalmente em solo brasileiro, com 2830 metros de extensão”, fui me lembrando de ter estudado algo assim...

Mas uma coisa é aprender nos bancos de escola, outra coisa é ver. E lá estava eu, em cima de uma balsa, de frente com o Velho Chico, e não podia acreditar que aquela imensidão de águas existisse. Eu que de rio só conhecia as tristezas paulistas chamadas Tietê e Tamanduateí, olhava para a minha direita, olhava para a minha esquerda e dizia: geeeeente....

Se eu tivesse consultado um mapa antes de viajar, teria saído sem dúvida mais instruída, mas não teria o impacto daquela emoção inesperada, caindo do céu, surgindo na minha frente sem nenhum aviso, um rio! O rio mar! Ali, inteirinho na minha frente, sem me avisar.

Hoje me recordo daquele presente inesperado e sinto saudades, e não só do Velho Chico, não só da graciosa Januária e minha querida amiga de infância. Sinto saudades, também, e muitas, da meninota que não pensou, não fez contas, não mediu distâncias, não olhou no mapa, não procurou dificuldades, fez a mala e foi.

Hoje quando a Alice me chama para ir a Ubatuba, a Danilinha insiste para que eu vá ficar com ela em Rio Preto, ou meu amigo João Batista lá de Araraquara me fala, Betinha, vem, passa o dia aqui com a gente, eu fico: mas....mas, e a passagem, e a ida, e a hospedagem, e a volta, e...e....e....?

Os muitos "mas" que me impedem de simplesmente fazer a mala e ir.

Os muitos “mas” que me impedem de ganhar novas paisagens de presente, novas montanhas, novas praias, novas cachoeiras e novos rios...

Ah, mas isso vai mudar, ora se vai. Sinto que aquela meninota está se agitando aqui dentro pedindo de novo para viajar, com vontade de novas atitudes irresponsáveis, com vontade de se surpreender com novas estradas e inesperados rios...

- "Moçô, me dá uma passagem pra Januária?..."

Velho Chico, vens de Minas
Onde o oculto do mistério
se escondeu
Sei que o levas todo em ti
Não me ensinas
E eu sou só,
eu só,
eu só,
eu.
(Caetano Veloso)