sexta-feira, 2 de maio de 2008

pão-de-beatriz

 Para falar de minha amada amiga Bia, eu preciso – de novo – entrar no túnel do tempo. Continuo achando que escolhi errado o título do blogue.

Quando criança, eu tinha o péssimo hábito de colocar apelidos em todos à minha volta, e o que é pior, apelidos que tinham a ver com suas aparências. Então tinha a Nariz, e eu não preciso nem explicar, tinha a Bruxa da Branca de Neve, fácil também. Tinha uma família de uns garotos, que eu chamava de Família dos Idade da Pedra, porque se pareciam com um personagem dos quadrinhos, o Brucutu. Havia o Idade da Pedra Lascada, o Idade da Pedra Polida, e o pai dos garotos, que eu chamava de Pai dos Pedras. E muitos outros apelidos.

E tinha os Pecador Outrora, assim mesmo, na concordância errada. Naquele tempo, as mulheres tinham o hábito de fazer visitas. Minha mãe nos levava naquela casa, e era só sentarmos, que a dona da casa chamava os seus filhos, dois garotinhos magrinhos e muito parecidos, e falava para eles cantarem um hino, e eles mandavam ver num dueto, e o hino se chamava Pecador Outrora. Daí o apelido. E como eu nunca lembrava os nomes dos garotos, que eram também parecidos, o apelido foi assim, no atacado, para ambos.

Então aqueles apelidos funcionavam, e funcionam até hoje para mim, como um marco, a delimitar as divisas do meu bairro. Os Pecador Outrora, por exemplo, moravam na maior rua daqui, bem no meio dela. Quando falo: mãe, vou até ali, e ela pergunta, ali onde, e eu respondo, ali, perto do Pecador Outrora, então minha mãe já sabe onde é.

Um dia a muito tempo atrás, minha mãe me disse que um dos Pecador Outrora tinha se casado com aquela moça baixinha lá. E eu arquivei a informação junto daquelas outras que a gente ouve das mães e não dá a mínima importância. Mas uma manhã, muito tempo depois, apareceu no escritório em que eu trabalhava, uma mocinha muito parecida com a tal baixinha lá. Mas não poderia ser, pensei, fazia tanto tempo. Claro que não era ela, era sua filha. Então naquela noite cheguei em casa com a noticia: mãe, está trabalhando comigo a filha do Pecador Outrora. E a jovem logo trouxe a mãe, para trabalhar lá também, e nós nos tornamos imediatamente amigas.

Nunca contei esta história para a Bia, tinha um pouco de vergonha dessas bobagens. O bom deste espaço é isso, eu perco toda a vergonha. Só espero não perder a amiga.

Descobri então que Bia e eu tínhamos muitas coisas parecidas dos tempos de outrora. Outrora Bia e eu nascemos e nos criamos no mesmo bairro, feio e miserável. Outrora moramos em casinhas pobres, sem saneamento básico, sem embelezamentos de espécie alguma. Outrora tirávamos água de poço. Devido à falta de saneamento básico, outrora Bia e eu tivemos uma infância muito doente.

Outrora, quando a companhia de água, chamada naquele tempo Departamento de Águas e Esgotos, trouxe os encanamentos para as ruas do bairro, os nossos pais não fizeram a ligação necessária. Então, outrora, Bia e eu, nos envergonhávamos perante as coleguinhas, de sermos as únicas a morar em casas que ainda não tinham torneiras.

Bia e eu, outrora, tivemos problemas de alcoolismo em nossas famílias, e todas as funestas conseqüências que isso pode acarretar.

Outrora Bia e eu não tivemos o vestido longo para ir ao baile de formatura. Nossas mães não se preocuparam em nos fazer esse agrado, outras mães, tão pobres como as nossas o fizeram.

Outrora Bia enviuvou, ficando sozinha com uma criança para cuidar, situação de certa forma muito parecida com a minha, que embora solteira, me considero uma viúva também.

Outrora Bia e eu estudamos à nossa própria custa, e ainda ouvindo reprimendas dos parentes, que achavam que aquilo era tempo perdido, devíamos procurar maridos, isso sim.

Outrora tivemos sonhos, ilusões, medos, doenças, dívidas e dúvidas. Creio que nem tão outrora assim, nessa parte, é tudo muito atual.

Falando agora por mim, só não posso afirmar que fui uma pecadora outrora. Sou pecadora atual, atualíssima. Mas felizmente e outrora também, nossas vidas foram impactadas por Jesus de Nazaré, então temos seguido em nossa viuvez, tocando a vida com dificuldades, mas com coragem, na certeza de que podemos contar com sua misericórdia, necessária mais do que o alimento, para sobrevivermos em meio às nossas lutas, tristes lembranças e limitações de todo o tipo. Porque outrora não tínhamos nenhum consolo, hoje, somos consoladas na certeza de podermos experimentar de sua inesgotável Graça.