sábado, 24 de maio de 2008

Farinha real

Mentirinha é o nome de uma fritura feita com massa de pastéis, quando não há recheio para os pastéis. Corta-se a massa em tiras, e frita-se. Pode-se colocar por cima um pouco de queijo ralado. Apenas para sermos didáticos: queijo ralado para quem não sabe, é uma coisa inventada para pobres, com as sobras de queijo deixadas pelos ricos. Quem já entrou num depósito de sucata de queijos, e conheceu os habitantes de quatro patas daquele lugar, não terá muita vontade de continuar a consumi-los. Eu continuo, embora tenha entrado em um depósito desses, lá na Rua da Cantareira, próximo ao Mercado Municipal, já esqueceram que contei que sou curiosa? E vi as tais ratazanas, vi gatos também, a coisa era meio empatada. Mas aqui em casa o que os olhos não vêem o coração não sente, no caso o estômago, e eu já estou fugindo do assunto no primeiro parágrafo. Voltemos. Falava eu das mentirinhas.

Aqui em casa somos especialistas em aproveitar sobras de comida. O lema de nossa cozinha é: o bife de ontem é o picadinho de hoje que será o croquete de amanhã. Daí as mentirinhas, que sempre aparecem na nossa mesa nas tardes de sábado, junto com Guaraná Antártica, e é muito gostoso, embora claro, seja engano de estômago de cozinha de gente pobre. Mentirinhas.

Estou abaixo da reserva de minhas forças. Gostaria de tirar a cabeça do pescoço por cinco minutos e guardá-la numa caixinha. Cinco minutos. Tenho um google na cabeça, que não pára, que não pára, que não pára. Não freqüento a doutora desde agosto do ano passado, na minha insanidade, esse dinheirinho poupado serviria para quitar contas. Tudo bem, as contas foram quitadas, mas e agora? Capitulei. Alô, queria marcar uma consulta com a doutora Elizabeth? A doutora Elizabeth se aposentou. Foi tão de sopetão, que eu apenas disse ah, obrigada...e desliguei.

Mas meu coração entrou em picos altos. E agora? Como? O que eu faço? Eu não ia na doutora mas sabia que ela estava lá, e isso já me reconfortava.

Passado um tempo minha inteligência se apresentou. Se ela se aposentou, ela precisa passar minhas fichas a alguém, mesmo que esse alguém seja um desgraçado de um psiquiatra desinfeliz lá do posto de saúde cinza. Então segunda feira irei lá, argumentar, e só a idéia de ter de ir a algum lugar mendigar sobras, me leva à náusea desde já. Mentirinhas com queijo de rato.

Ela levou quinze minutos de vaias e xingamentos, não, agora estou falando de Lucinha Lins. Precisou o Guilherme Arantes intervir, entrar no palco, ficar ao lado dela. A moça, que tinha uma bela voz cristalina, não agradou ao público com sua magnífica Purpurina. Dali pra frente pouco se ouviu falar de Lucinha Lins como cantora, creio que essa experiência a marcou profundamente, e não seria pra menos, um maracanazinho de vaias.

A sala dela tinha uma parede inteira forrada de quebra cabeças, agora estou falando da doutora. Lindo. Tinha a Mona Lisa, enorme. Tinha Veneza. Tinha a Torre Eiffel, tinha Viena. Um sofazinho forrado com uma linda colcha de retalhos, uma janela de folhas que se abria para uma parede coberta de hera...Ela tinha uns 65 anos, era bonita, não parecia médica, parecia gente...

E agora, o que vai ser de mim?

Ela era filha de metodistas, agora estou falando da poetisa. Ao contrário de minha família, metodistas cultos. Foram eles que fundaram a Confederação Evangélica, Confederação Evangélica é uma coisa que não existe mais. Seus pais foram exilados, só gente culta era exilada. Passaram o exílio na Inglaterra, só gente culta passava o exílio na Inglaterra. Voltou de lá cheia de poesias lindas na cabeça. Só gente culta transforma a loucura em lindas poesias.

Quero me safar, quero me safar, acho que vou a um safári. Dizem que as aparências enganam, desenganada estou.

Não, não vou citar o nome da moça, também isso não tem importância nenhuma, ela já está morta mesmo. Suicidou-se.