segunda-feira, 31 de março de 2008

A oração



O pão que hoje vou amassar, conta uma história que aconteceu numa fase tremendamente difícil de minha vida. Tendo recebido de não sei que psiquiatra o diagnóstico de bipolaridade, achei que podia resolver isso em sessões de terapia. Não resolvi muito, a terapia era cara, esses processos são demorados, no fim acabei abandonando aquilo tudo, e aprendendo a conviver com minhas deficiências, o que tenho feito até hoje, com a ajuda de Deus e de minha boa Dra.Elizabeth. Mas de uma maneira ou de outra, a terapia destampou o panelão de minhas más lembranças adormecidas, e isso ficou barafustando minha cabeça.


Foi então que, numa tarde magnífica de sol, saindo do elegante consultório, dei por mim em plena avenida movimentada, xingando um poste - sim, isso mesmo - um poste, como se aquele poste fosse o próprio Deus. Olhei para o poste, devia estar tremendamente descontrolada e disse: Olha aqui, Deus, fique sabendo... e mandei ver numa série de xingamentos, palavrões, blasfêmias e imprecações de todo tipo. Chorei, gritei, esbravejei, reclamei, ainda bem que ninguém me colocou numa camisa de força. A coisa toda levou uns 15 minutos. Terminada a cena, dirigi-me ao ponto de ônibus e voltei para casa, me sentindo super leve. Hoje acho graça da cena, e reflito que foi muito bom. Deus não deve ter se ofendido em absoluto com meus palavrões, mas eu precisava daquilo.



Tempos depois, lendo Adélia Prado, vi que ela tinha passado por situação igualzinha, ela teve um momento de sua vida em que sentiu forte necessidade de xingar Deus. Aprofundando um pouco mais a questão, li também que Jung, quando ainda pequeno, concebeu em sua mente um tremendo insulto a Deus, e como tinha medo de colocá-lo para fora, devido à religiosidade sua e de sua família, quase adoeceu. Foi quando ele se trancou no quarto, e deu vazão àquela necessidade, que o seu mundo se reorganizou.

Foi então que vi que não estava sozinha, e que de uma maneira ou de outra, pondo para fora ou não, muitos já passaram por esse tipo de inferno.

A reflexão do poste foi o meu inferno, necessário, aliás, para minha relação com Deus tomar seu rumo. Mas não aconselho ninguém a fazer isso na rua.


Mais leve foi a história de minha amiga Verônica. Cena: Eu, Mirian e Verônica no escritório. Os nomes são esses mesmos, provando que as coisas belas estão em toda parte. Eu trabalhava em silêncio, e Mirian conversava com Verônica: - Vê, você precisa chegar em casa, entrar no seu quarto, e levar um papo cabeça com Deus. A conversa acabou aí.


Mas no dia seguinte Verônica retomou o assunto: começou a contar como tinha sido a oração da véspera. Gesticulando muito, ela disse: - Eu me sentei na cama, e disse: - escuta aqui Deus... - não, não vou contar as queixas de Verônica, mas creia que eram enormemente parecidas com as suas e com as minhas. E ela gesticulava, e apontava o dedo indicador para baixo, representando ela na cama falando com Deus. Súbito, Mirian desanda a rir. - Vê, você está apontando para baixo, quando a gente fala com Deus, a gente aponta para cima, para o céu... Você estava falando com o capeta, não com Deus!!! E ambas riram muito. Confesso que ri também, mas intimamente discordei de Mirian. Creio que Verônica realmente falou com Deus. É que o Deus dela estava tão ausente, que ela só conseguia vê-Lo embaixo da cama mesmo. Talvez a raiva que ela sentia pela falta de respostas era tanta, que a impedia de situar Deus em um lugar digamos, mais elevado.



O que me leva, para finalizar, à ilustração de Normam Rockwell, onde há uma senhora e um garotinho rezando numa lanchonete, ilustração a meu ver das mais tocantes, principalmente para mim, que já fui protagonista de algo parecido. Foi o caso que minha tia Amélia me levou para tomar um lanche nas Lojas Americanas, no tempo em que se tomava lanche nas Lojas Americanas. A garçonete serviu a taça de sorvete, que eu já ia devorando, sôfrega, quando titia falou: - Espere, antes nós precisamos dar graças. Foi então que protagonizamos a bela estampa, titia numa linda e delicada oração, e eu morrendo de vergonha do que os outros iriam pensar, pois que naqueles tempos não era moda ser evangélico, creio que naquela época essa palavra nem existia.


Lembrar de tudo isso me traz muita comoção. E me faz constatar que, da tocante e tímida oração na lanchonete, ao surto do poste, passando por experiências iguais às do deus-diabo de minha boa amiga Verônica, tenho caminhado ao lado Dele, embora aos trancos e barrancos, acertando pouco e errando muito, em muitas vezes fazendo orações confusas e arrevezadas, nunca sabendo ao certo o que quero em minhas preces, e muito menos encurvando a cabeça para falar com Ele, pois que a maior parte de minhas orações se dá no metrô, no ônibus e principalmente no travesseiro, sendo que estas nunca terminam, o sono chega antes.
Mas sigo em frente com minhas preces, espero que o Pai tenha paciência com essa filha que ainda não aprendeu a orar.





sábado, 29 de março de 2008

A oração de Rute




 “Onde quer que tu fores, ali irei eu, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. Onde quer que morreres, morrrerei eu e aí serei sepultada, e faça o Senhor o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.”

Essa confissão está no contexto de uma história extremamente bonita, tanto que para contá-la, eu teria que assar um outro tipo de pão, o que pretendo fazer em breve. Por ora, vou fazer um breve resumo para poder situar os ingredientes desta massa:

Novamente, recorro aos relatos bíblicos, você já terá notado que eu gosto de relatos bíblicos não é mesmo? Nesta história, temos uma mulher chamada Noemi. Ela e seu esposo saíram de sua terra natal, Belém de Judá, em virtude da fome que havia naquele lugar, levando com eles seus dois filhos. Depois de um certo tempo, ela ficou viúva, e seus dois filhos se casaram com mulheres daquela terra estrangeira. O nome delas eram Rute e Orfa.

Porém os dois filhos de Noemi também morreram, e em meio a tanta tristeza, ela resolveu retornar à sua terra natal. A acompanharam até os limites da cidade as duas noras; ambas choraram muito na hora da despedida. Uma delas, Orfa, voltou para sua família. Rute, porém, não conseguiu se separar de sua sogra, e resolveu viajar com ela. Foi nesse contexto que ela fez a belíssima afirmação de compromisso que abre este texto.

Justamente por ser uma belíssima afirmação de compromisso, esse texto foi usado para compor um hino destinado a interpretação por coral, e que foi largamente utilizado em cerimônias de casamento na igreja protestante. Muitas moças no meu tempo conheciam sua letra até de trás para frente. Algumas também chegaram a recitar o texto, no momento da troca de alianças. Mães, avós, tias, amigas, todos choravam de emoção, era o momento culminante da cerimônia, tanto o cântico quanto a declaração de compromisso baseados no texto do Livro de Rute.

Eu, claro, como todas as outras moças, sonhava com o meu momento Rute. Perco a conta de quantas vezes idealizei minha cerimônia, mudando somente a aparência do noivo no sonho, que era sempre o afeto da vez. Idealizei tanto, mas tanto, que trago até hoje esse texto na ponta da língua, e eu não era diferente de nenhuma outra mocinha de minha igreja.

O vestido, eu sabia exatamente como seria, desde o tecido, o corte, o modelo, até os mínimos detalhes de miçangas e bordados. Igualmente as flores e o véu, tudo já estava perfeitamente desenhado em minha cabeça. Na verdade eu usaria três vestidos: um para entrar na igreja, outro para usar no buffet, e um vestido ou talvez um terninho para me despedir das amigas invejosas, partindo para a lua-de-mel. Devo ter visto isso num filme. Ou não. Não me lembro. Mas me lembro perfeitamente dos detalhes de meu figurino nupcial. Já tinha também completa a minha lista das músicas da cerimônia, tanto da entrada na nave, quanto da saída, da troca de alianças, e, é claro, Rute. Prometo colocá-las aqui.

Só que o meu casamento não aconteceu. Fui assistindo ao casamento de minhas amigas; uma a uma todas tiveram o seu momento Rute. Menos eu. Hoje não me envergonho mais de contar, mas na verdade tive apenas um único namorado, que terminou comigo dizendo que o nosso namoro atrapalhava seu relacionamento com Jesus. Tudo bem. Espero que Jesus tenha dado a ele aquilo que eu não dei.

Os outros não foram namorados. Foram sujeitos que só apareciam no meio da semana, ou nas noites de sexta, nunca nos finais de semana. Que nunca me levavam ao cinema, a um jantar, a um passeio enfim. Mas apenas ao motel. E o pior disso tudo, é que a tonta ia. Ia achando que, talvez quem sabe, ele viesse a gostar de mim, me assumir. Dava sexo para obter amor.

Por muito tempo, quando alguém me perguntava porque não me casei, eu dava respostas elaboradas, cultas, do tipo não tenho vocação para o casamento, aprecio demais minha solidão, acho que isso está até no meu orkut. Mentira. Nunca me casei porque ninguém nunca quis se casar comigo. Esses rapazes que apareciam em minha vida apenas para me usar, acabaram se casando com outras moças, não comigo.

Hoje quando vejo ao meu redor meninas enveredando pelo mesmo caminho, meu coração chora de tristeza. Sinto vontade de gritar: querida, não aceite isso em sua vida. Se um rapaz gosta de você realmente como diz que gosta, ele no mínimo deveria colocar em seu dedo um anel de noivado, assumindo publicamente, e com orgulho o seu amor por você, sua noiva. Mas deixar que rapazes acabem com a sua juventude e o que é pior, com a sua saúde, em motéis de quinta categoria, fazer amor numa cama de alta rotatividade? Diga não! Não troque os anos mais lindos de sua vida por uma nojenta cama de aluguel.

Sei o que elas diriam: se uma moça se torna difícil, os rapazes somem. Mas eu diria a elas que a evasão masculina antes de ser algo negativo, é sim um refinamento da busca. Se aquele jovem ama você, eu diria, ele irá persistir em lhe conquistar.

Uma ida ao motel é entrar na vida de alguém pela porta dos fundos. Num casamento, entramos pela porta da frente.

E ao contrário do que dizem muitas, de que um casamento é apenas um papel, desnecessário, o que importa é o amor, é o respeito, a convivência, eu afirmo e sei que mesmo essas mulheres que dizem isso concordam intimamente comigo: Um casal declarar o seu amor na presença de Deus, parentes, amigos e testemunhas, é lindo demais, por mais banalizadas que estejam as cerimônias de casamento.

Eu contaria tudo isso e terminaria dizendo a essas jovens: se um dia você tiver o seu momento Rute, e declarar seus votos de amor e fidelidade eterna ao seu amado, perante Deus, na presença de todos aqueles que você ama, mesmo que seja na mais simples cerimônia, você entenderá o que estou querendo dizer.

Ao que vem depois

 
Titia Amélia foi minha professora de Escola Dominical. Escola Dominical era um costume da igreja protestante na minha época, e como o próprio nome já diz, era uma reunião que acontecia aos domingos, pela manhã, onde as crianças e também os adultos estudavam a bíblia. Embora fosse também destinada a adultos, a Escola Dominical sempre foi voltada mais para as crianças. Todos se reuniam em classes, separados por faixa etária, então existiam as classes dos mais pequeninos, depois os intermediários, que naquela época se chamavam juniores, os rapazes, as moças, e por fim os adultos. Todas as classes tinham nomes. A classe dos pequeninos se chamava Cordeirinhos de Jesus. Os juniores eram Lírios do Vale. A classe de moças era a classe Estrela da Manhã. Os jovens eram os Amigos de Wesley. E finalmente a classe dos adultos, que se chamava Vencedores por Cristo. Tudo muito inocente, e portanto muito lindo.

Minha tia era o que se chamava na época de moça fina e prendada. Sabia costurar, tricotar e bordar com perfeição. Por conta disso, eu e minhas bonecas, tínhamos as mais lindas roupas. Lembro-me que ela fazia para as minhas bonecas roupas que até hoje seriam desejadas por mães, para vestir seus bebês, tamanho o capricho e o esmero. Eu possuía uma variedade de luvinhas, boinas, gorros, chales e manteletes, todos feitos por ela. Ela também me fazia bolsas de crochê, com um fio chamado ráfia, nunca mais vi nada desse tipo. O fecho e a correntinha ela comprava em lojas apropriadas, e fazia para mim uma coleção de bolsinhas coloridas, ao ponto de eu ter uma para combinar com cada vestido.

Minha mãe que também era muito caprichosa com minhas roupas, toda semana aprontava de véspera minha roupa de ir à Escola Dominical, havia um canto em meu armário onde já ficava lá, prontinha, a toalete que eu usaria no domingo pela manhã – vestido, meias, sapatinhos, bolsinha e os enfeites de cabelo. Ao lado, eu colocava minha bíblia – com meu nome gravado em letras douradas, meu hinário, que era um livro com os hinos adotados pela igreja, e minha revista, pois que tínhamos uma revista, de onde seguíamos as lições. Claro que a minha revistinha, na véspera, já estava super lida, super estudada, eu já tinha colorido todos os desenhos que havia para colorir, já tinha decorado todos os versículos bíblicos que havia para decorar, me lembro que às vezes eu parava de brincar e ia olhar no armário, só para conferir todo o meu kit Escola Dominical. Amava aquilo tudo.

A nossa igrejinha era pequena, singela, pintada de branco, um encanto. Fora construída por um americano, Reverendo Schisller, ela tinha aquela arquitetura típica de igrejinha rural americana, possuía até um campanário, vazio, nunca houve um sino ali. Ela ficava na localização mais elevada do bairro, dava para vê-la de qualquer lugar de onde se estivesse, e eu a amava. Ela ainda está lá, mas, claro, alguém já se encarregou de eliminar todos os vestígios da antiga construção.

Titia Amélia nos aguardava aos domingos, sempre com algum mimo para ilustrar suas aulas. Desenhos e figurinhas recortados em cartolina para colorir, figurinhas para ilustrar as aulas, essas figurinhas coloridas eram revestidas de flanela, e eram colocadas num cavelete sobre uma flanela colorida, esse recurso se chamava flanelógrafo. E era assim que ela mostrava para nós cenas da bíblia, e nos ensinava, para nosso encanto. Ao final nos presenteava com alguma figurinha recortada em cartolina com algum tema relacionado à lição. Ela também sabia cantar e tocar piano, devo a ela saber um pouco desse instrumento. Então ela sempre nos ensinava canções religiosas, que chamávamos de corinhos. Esses corinhos falavam de Jesus, mas também de relacionamentos de amor e cortesia entre as crianças.

Veio dela, dentre muitos outros, o ensinamento das três regrinhas de ouro: com licença, faz favor, muito obrigado. Regras que uso até hoje, e não é por estilo, é hábito mesmo, que para mim é tão natural como piscar, pois aprendi na tenra idade, é nessa época que se ensina esse tipo de coisas.

De todas as suas aulas, a que mais marcou, foi uma que ela intitulou como: O que vem depois. Ela colocou uma mesinha no centro da classe, com uma moringa sobre ela. Naquele tempo se usava moringa com água. Então ela chamou uma criança, e disse: faz de conta que você está chegando da escola, morto de sede, o que você faz? A criança se dirigiu à moringa e tomou um copo de água. Propositalmente, havia na moringa apenas a quantidade equivalente a um copo. Aí titia chamou uma outra criança, e simulou a mesma situação. Não havia mais água. Então titia falou: então, crianças, quando vocês tomam a última água da moringa, o que vocês fazem? Todos nós: avisamos a mamãe! Ela: isso mesmo! Se você já for grandinho, você pode você mesmo encher novamente a moringa. Mas s
e você não puder carregar, avise a mamãe. Pense sempre naquele que vem depois de você. Isso é amor, consideração e respeito. Isso é o que faz toda criança que ama Jesus, pois se Jesus quer o bem de todos, nós também devemos querer, não é mesmo?

Era dessa forma que titia nos conduzia pelos caminhos da cidadania.

Hoje nos escritórios, quando vou usar a copiadora, a impressora, procurar água no galão, ou papel higiênico no banheiro, e não encontro a coisa certa, penso que foram poucas as titias amélias que passaram por este mundo. Alguém passou por ali, usou o último recurso que havia, resolveu a sua necessidade e...largou o problema para o que vem depois.

E assim fazemos com o lixo que descartamos na via pública, com a bagunça que deixamos nos banheiros, com a sujeira do cachorro que levamos a passear, nas prateleiras das gôndolas dos supermercados que desarrumamos, o problema não é nosso, é do outro, ora, o outro, que se dane o outro.

Nos meus tempos de criança, aprender sobre Jesus, era também aprender a se relacionar com o próximo. Era aprender a conviver em harmonia, com educação e respeito. Saudades daqueles tempos.

Titia Amélia faleceu no dia 22 de setembro de 2005, exatamente no momento da entrada da primavera. Claro! Não poderia ser de outro modo. Aquela linda flor desabrochou para a eternidade.

quinta-feira, 27 de março de 2008

Senhor, tem pena de mim



"De joelhos louvemos nosso Deus
De joelhos louvemos nosso Deus
Se de joelhos estou
Contemplando o nascer do sol
Senhor, tem pena de mim."



Estes são versos de uma canção norte americana, conhecida em seu estilo como "spiritual". Os negros escravos norte-americanos nos deixaram como legado canções belíssimas, não só em músicas como também em letras.



Devido à sua triste condição de cativos, eles nada podiam aspirar desta vida aqui. Então suas canções sempre visavam ao céu, sendo comuns versos do tipo: meu lar é além do Jordão, quando eu atravessar o Mar da Galiléia, estou subindo ao céu numa doce carruagem, sempre assim. Suas letras eram centradas numa vida além desta, pois que não havia para eles a mínima possibilidade de consolo na situação amarga em que viviam.



Essa canção aí postada, "De joelhos", suplicando a Deus que tenha pena de mim, me dá o ingrediente do pão que hoje quero amassar. Pedir a Deus que se apiede de nós, é uma prece desnecessária, porque Deus "É" tão somente amor e misericórdia. Deus caminha conosco, sofre conosco, sente dores conosco, ele sempre sente pelos seus filhos única e tão somente amor. Orar assim seria o mesmo que pedir: Deus, eu lhe peço que seja Deus.



Mas no entanto, e inexplicavelmente, nós sentimos uma necessidade medrosa, quase infantil, de agradar ao Divino, e traduzimos esse sentimento em orações carregadas de temor. Talvez tenhamos dentro de nós, n'algum traço genético que eu não saberia explicar, uma necessidade ancestral de agradar à divindade, como se fazia antigamente aos deuses de então. Aqueles deuses que precisavam ser agradados, mimados, presenteados, muitas vezes até com sacrifício humano, para liberarem sua benevolência, que se traduzia, naqueles tempos por chuva, boa colheita, sucesso nas batalhas, deuses que precisavam ser convencidos a colaborar.



Sinto que continuamos ainda hoje fazendo de Deus um deus caprichoso, que precisa ser constantemente lembrado de nossas necessidades. Um deus que precisa ser agradado com frases soberbas - Amantíssimo Deus, Pai de Misericórdia, Senhor Todo Poderoso... Um deus que precisamos convencer, com nossa insistência, com preces repetidas, com nossos jejuns, com nossas correntes de oração, com todo tipo de devoções e fórmulas de louvor e adoração.



Sendo eu de tradição cristã reformada, já ouvi todo tipo de oração, muitas eloquentes, cheias de conteúdo, orações contundentes cheias de fé, com petições de todos os tipos. Mas a que mais me impactou, eu diria que me perturbou, foi a que ouvi quando ainda era bem pequena. Naqueles tempos era permitido pela prefeitura aos cidadãos velarem seus mortos em casa. Pois foi numa situação assim, em que se velava um rapazinho que tinha morrido por afogamento, que pude acompanhar, e com susto, a oração, antes o lamento do seu pai. Ele dizia, aos prantos: Ô Deus desgraçado, Deus maldito, que me levou o meu filho. E ficou nesse lamento o tempo todo do velório, com mais alguns outros palavrões que não quero escrever aqui. Todos dirigidos à pessoa de Deus.



Aquilo me perturbou, mas embora ainda pequena, eu senti que aquela era uma oração legítima. Não havia ali nenhum enfeite, nenhuma formatação, nenhuma frase do tipo eu me conformo com a tua santa e bendita vontade, nada, apenas e tão somente o lamento profundo de um pai inconformado. Mas eu hoje tenho certeza de que aquela oração, antes aquele lamento, chegou aos céus.



O caminho para Deus sempre passa pelos nossos infernos. Quando nos encontramos frente a frente com a noite escura da alma, produzimos emoções verdadeiras, palavras legítimas, que expressam sem enfeites o que nos vai no mais íntimo do ser. E isso cria com o Pai um canal imediato de relacionamento, pois que isento dos atalhos das frases de efeito.



Jesus veio para nos ensinar a chamar Deus de pai, papai, papaizinho, Abbá. Qual criança chegaria para seu pai dizendo: soberano e maravilhoso pai, eu te louvo e te adoro, e te peço um biscoito...Muito mais verdadeiro seria dizer: Deus, eu hoje estou muito triste, porque a muito tempo eu faço esta ou aquela prece, e não tenho obtido nem sombra de resposta.



Talvez nossa relação com Deus ainda passe pelo medo. Vou agradá-lo, sempre é bom, nunca se sabe... Fazendo isso, estamos agindo exatamente como os povos primitivos, que acreditavam em deuses com características humanas, que favoreciam estes ou aqueles arbitrariamente em detrimento daqueles outros. Um deus que era associado a males, pragas e fenômenos naturais de todo tipo. Mas Jesus veio para nos apresentar a um Pai, que faz cair a chuva sobre os bons e os maus, indistintamente.




Por isso termino com uma frase de C.G.Jung, que procuro praticar, tanto que a tenho colada no espelho do meu quarto, e apesar de concordar com o Abbá, de Jesus, ainda assim procuro praticá-la:



"A relação do homem com Deus provavelmente tem de passar por uma determinada alteração importante: em lugar do louvor propiciatório a um rei imprevisível, ou da oração da criança a um pai amoroso, viver de maneira responsável e cumprindo em nós a vontade divina, será a nossa forma de adoração e de intercâmbio com Deus."



Da oração postada no topo, à esta frase do rodapé, existe toda uma gama de relacionamentos possíveis com Deus, mas quanto mais perto você estiver desta última, mais amadurecida será sua fé.


quarta-feira, 26 de março de 2008

A história da viúva de Sarepta



Embora nunca tenha me casado, ainda assim considero-me uma viúva. Tenho cinquenta anos, e um filho de vinte, que criei sozinha. Com exceção da ajuda de meus pais, não contei com mais ninguém.


Quando tive o meu filho, a dura luta para criá-lo sozinha, somada a desilusão e a tristeza de saber-me abandonada, levaram-me a me afastar do convívio dos amigos; tornei-me uma mulher só. Hoje arrependo-me disso, mas é difícil para mim retomar esse fio perdido.


Identifico-me, portanto, com a história que vou contar: é a história da viúva de Sarepta. O original você encontrará no texto sagrado, no livro de I Reis, no capítulo XVII, versículo 8 em diante. A história se deu assim:


Conta a bíblia que a nação israelita, através dos seus reis e governantes, enveredou por caminhos errados, tudo muito igual, não é mesmo? Havia naqueles tempos um profeta, de nome Elias, que era zeloso do bem, e inconformado com o rumo por que seguia o seu país. Então esse profeta, com a coragem que só um verdadeiro homem de Deus pode ter, encarou o rei e profetizou que, por muitos anos, não haveria mais chuva naquele lugar, nem tampouco orvalho. Era a conta divina, por todo o pecado daquela nação. E foi o que realmente aconteceu, houve grande fome e desolação, todos os rios e mananciais vieram a secar, extinguiram-se as fontes de alimentos.


Foi então que Elias recebeu de Deus uma ordem: vá à cidade de Sarepta, e procure lá por uma viúva, porque ela irá lhe sustentar.


Eu não saberia dizer como foi que Elias recebeu essa ordem: se foi sonho, se foi uma visão, se foi um sentimento. Só sei que ele fez exatamente assim. Lá chegando, encontrou de fato uma viúva, a quem pediu que lhe desse pão. A viúva respondeu que infelizmente não havia; e lhe deu a conta de todo o seu suprimento: ela tinha apenas um punhado de farinha, um pouco de azeite, e com alguns gravetos que estava procurando, ia fazer com esses ingredientes um último pão, para si e seu filho, depois iriam morrer de fome.


Essa cena sempre me emocionou: uma viúva catando lenha para fazer seu último pão. Claro que nunca passei fome, claro que minha vida nunca chegou a esse ponto. Mas é assim que eu me sinto sempre: alguém que tem muito pouco com o que viver, e esse pouco de que falo, não é somente o recurso financeiro (que é pouco também). Mas é o pouco de equilíbrio emocional. É o pouco de soluções. É o pouco de sabedoria. É o pouco de amigos influentes. É o pouco de resistência física, é sempre o pouco, sinto que estou sempre encurvada catando algo pouco com que viver...



Com a mulher da nossa história também deveria ser assim. Se a vida de uma mulher sozinha nos dias de hoje é difícil, quanto mais naqueles tempos esquecidos de Deus...



Mas o profeta Elias insistiu em que ela o atendesse primeiro, que fizesse sim aquele pão, mas que o trouxesse a ele, depois ela faria pão para ela e para o seu filho. E acrescentou que Deus dizia que a farinha e o azeite não iriam faltar.


Eu sou sincera em dizer aqui que não tenho bem certeza se foi fé ou medo do profeta que moveram aquela mulher. Num tempo em que imperava o patriarcalismo, num tempo em que a figura feminina não tinha nenhuma importância, num tempo em que mulheres sequer eram contadas como gente, uma viúva não teria voz nenhuma para se defender. O sentimento que moveu o coração daquela mulher a bíblia não relata. Só relata que ela atendeu ao profeta, e aconteceu exatamente o que ele tinha dito: a farinha e o azeite não acabaram por um longo tempo.


Eu não tenho bem certeza se é coragem ou covardia o que me faz sair da cama todos os dias bem cedo para enfrentar a dura rotina. Já me passou pela cabeça ser cantora na noite, vendedora de cachorro quente numa praia, qualquer coisa assim bem romântica ou descompromissada. Não estou bem certa se é a responsabilidade ou o medo que me impulsionam a continuar procurando gravetos no chão. Sei que gostaria muito que aparecesse alguém e me dissesse: confie em mim, o alimento para você e para os seus nunca irá faltar. Gostaria muito de ter um Elias abençoando as panelas da minha história.


Mas esse Elias nunca chega, então sigo tocando minha vida de viúva, sempre temerosa com a estiagem, sempre espreitando o céu à espera de chuva. Sempre convivendo com meu pouco azeite e minha pouca farinha.