quarta-feira, 28 de maio de 2008

O pão de Ana

 Deus, deixo-te. Não me serves para nada. Com essa profissão de fé ao contrário, Ana Paúcha, a Ana-Não de Agustín Gómez Arcos rompe com Deus. Ana é uma mulher de 75 anos, que perdeu o marido e dois de seus três filhos na revolução espanhola. O mais novo deles, o menino como ela o chama, ainda está vivo numa prisão, no norte da Espanha. Para romper com Deus, Ana foi ao quintal, o que me emocionou. Ela poderia tê-lo feito em qualquer aposento da casa, mas preferiu o quintal, o céu aberto...

Ana então resolve ir ao encontro desse último filho, a pé, atravessando todo seu país, seguindo a linha do trem. É uma viagem derradeira e ela sabe disso, mas isso não a impede de empreendê-la com todas as suas forças. Antes ela limpa toda a casa, e prepara um pão, e esse preparo leva um dia inteiro de trabalho.

“Pega no pacote e apalpa-o, para certificar-se de haver feito um bom nó triplo com as quatro pontas do lenço de seda. O filho a espera. O menino. Foi para ele que confeccionou o pão de amêndoas, untado de azeite, com gosto de anis e bastante açúcar (um bolo, cuidava ela), o derradeiro amassado por suas mãos de mãe”.

Foi Mário Sérgio Cortella quem me abençoou, pela tela da televisão, quando disse que o pecado contra o Espírito Santo, o tal do pecado imperdoável que os pastores tanto utilizam para aterrorizar os fiéis, é um só: deixar de ter esperança. O único algo que um crente jamais deverá fazer.

Ana-Não rompe com Deus mas não rompe com sua esperança, que outra força faria uma mulher de 75 anos atravessar todo um país, ao encontro de um filho aprisionado?

Ao longo da viagem, Ana se depara com a morte em várias facetas. Vê morrer uma cachorra, que tinha sido sua companhia num pedaço da jornada. Lava defuntos. Envolve-se com artistas de circo decadentes. Vê morrer um cego, que também foi sua companhia noutro trecho. Cercada de miséria e morte por todos os lados, Ana caminha, levando sempre o pão consigo: um pão de amêndoas, untado de azeite, com gosto de anis e bastante açúcar (um bolo, dizia ela), fortemente embrulhado e amarrado ao corpo, sob a roupa.

Após longa e cansativa viagem, Ana Paúcha chega ao seu destino, e pergunta pelo filho. Morreu, responde distraidamente o carcereiro. Onde está enterrado senhor? pergunta Ana, engolindo em seco. O carcereiro faz um gesto que significa por aí, em qualquer lugar. Ana agradece e se retira. Ela é educada apenas em respeito à memória do filho morto.

Nos fundos da prisão, cercada de lixo, já sentindo a morte chegando a gelar-lhes as pernas, entre lágrimas de dor e revolta, Ana come aquele pão, a saber: um pão de amêndoas, untado de azeite, com gosto de anis e bastante açúcar (um bolo, ela diria), àquela altura seco e embolorado. Com aquele gosto de morte na boca, Ana realiza sua comunhão definitiva, e sentindo aos poucos o entorpecimento tomar conta do seu ser, tomba para sempre ali.

A quem me perguntou o nome da poeta, agora eu respondo: É Ana, também. Ana Cristina César, ou Ana C. como os amigos a chamavam, saltou para fora da vida no dia 29 de outubro de 1983. Perdeu a esperança, desistiu de ser, deixando para trás uma coleção de belíssimas poesias, e saudades. De um certo modo, ela foi também uma espécie de Ana-Não.