segunda-feira, 26 de maio de 2008

Que fim levaram todas as flores? *






À Elizabeth Klasina Hagenius

Quem sumiu com os cartazes dos cinemas? Eram cartazes pintados à mão, verdadeira arte popular e anônima, muito comuns nos cinemas da Avenida São João. E que fim levaram os cinemas da Avenida São João? acho que devemos perguntar isso ao bispo.

Quem levou o último caminhão com a carroceria de madeira, pintada com arabescos? Deve ter sido o mesmo que levou o papel grosso com que eram feitos os sacos de açúcar União, costurados por um sistema que se abria a um simples puxão. Adorava fazer aquilo. Mas quem os levou, deve ter sido o mesmo sujeito que levou os sacos de papel dos Supermercados Pão de Açúcar, que já está tentando faz tempo levar também os Supermercados Pão de Açúcar.

Que fim levou o sujeito que consertava bolas de futebol na praça da República? Uma sacola de couro era todo o seu estabelecimento, e seu local de comércio, um degrauzinho qualquer. À sua frente, sempre uma fila de rapazinhos. E ele com aquelas agulhas grandonas, dava o show.

Que fim levou o Dá Licença? Um minúsculo corredor que vendia sanduíches de calabresa e sucos? Era impossível acreditar que um estabelecimento tão minúsculo pudesse ser tão freqüentado.

Deve ter sido o mesmo sujeito que levou o coreano que vendia pizzas em fatias no Parque Dom Pedro. A gente chegava e falava moço me dá uma...e já estava com ela na mão, eles a serviam com um papelzinho, engordurava as mãos, ela tombava, era quentíssima, a gente ia caminhando e tentando equilibrá-la, à caminho do colégio. Custava uma unidade monetária, não me perguntem qual.

O sujeito que levou o coreano levou também as pastelarias, verdadeiras maravilhas e verdadeiras moradias de baratas. Essas eu concordo que tenham ido embora, aquilo não dava não, eram um acinte à saúde pública. Mas os pastéis e as esfihas eram tudo de bom. Havia também o caldo de cana, o que me fez formular minha primeira frase sentenciosa: sexo é igual caldo de cana, é nojento, mas a gente gosta. É uma frase grosseira, eu sei, mas eu era jovem, me perdoem. Ainda acho caldo de cana uma maravilha, embora não o tome mais. Realmente é muito duvidoso. Pra falar a verdade, sexo também.

Pensando bem, o caldo de cana não levaram embora, o que levaram, foi o meu sabor sem crítica...

Ainda não levaram os elevadores de gaiola, belezas do século dezenove, que enfeitam alguns prédios antigos. Eles nos dão aquela deliciosa sensação de que os pavimentos estão passando por nós, e não o contrário. E não é tudo relativo? Falando em prédios, também não levaram certas assinaturas, sutilíssimas, nas paredes de edifícios antigos do Centro, gosto de procurar por elas. Nunca encontrei ninguém para me explicar como elas foram feitas, tampouco como se chamam.

Também não levaram o sujeito que conserta panelas e amola facas, e o seu tradicional apito, mas eu acho que a hora dele já deve estar chegando, juntamente com o sujeito que vende uma coisa estranha chamada biju, que nunca comi, ao lado do churrasco grego que não como nem morta. Claro, morta não como mesmo.

Só não levaram o ovo de madeira que vovó Maria Luiza usava para costurar meias, porque eu guardei. Mas não consegui impedir de levarem a vovó Maria Luíza. E o litro de leite Paulista, com a vaquinha e a menininha, também não levaram, porque meu irmão guardou. Somos uma família de saudosistas.

Mas vamos parar por aqui com essa conversa saudosista porque a fila anda, um dia me levarão também.

*Letra de João Ricardo, do Grupo Secos e Molhados.