quinta-feira, 14 de maio de 2009

O apito da fábrica de tecidos e eu

 Eu me preocupo de ficar contando historinhas do meu passado, e vocês saírem pensando que só o meu passado foi emocionante, ou seja, a verdade.

Mas fazer o quê, eu não tinha muito juízo, e é preciso uma boa pitada de falta de juízo para a vida ter mais emoção, e falta de juízo eu tinha em excesso, deu para entender a frase? Excesso de falta de juízo não me parece uma construção frasística muito boa, mas não quero consertar não, prossigamos. Até porque gostei da “construção frasística”, gente, frasística, que coisa mais esnobe, resta saber se essa palavra existe, mas eu estou fugindo do assunto, pior, nem comecei.

O assunto é um namorado mala que eu tive, namorado não, ficante. Imaginem uma mala de papelão sem alça em dia de chuva, era ele. Ele era cliente de uma agência bancária em que eu trabalhava, e como ele pertencia a uma tradicional família paulistana, eu estava investindo para ver se cavava alguma indicação para algum futuro cliente, gerentes de banco faziam esses sacrifícios, não sei se hoje ainda fazem.

Creio que fazem, mas não devem chamar mais de sacrificio, chamam de formação de Networking, o que para mim é a mesma coisa. Continuemos.

O sujeito era um mala, uma rodoviária. Herdeiro de uma tecelagem, o mauricinho não tinha outro assunto. Ele também estava importando seda, era outro de seus emocionantes assuntos. Uma companhia fascinante, como vocês podem ver...

Naquele tempo eu tinha mania de botecos, boteco mesmo, eu gostava de frequentar bar de bêbados, achava chique estacionar o carro bem na frente de um boteco, descer do carro lindamente vestida, chegar no balcão e pedir uma cerveja, eu achava aquilo um charme. Acompanhada, claro. E o acompanhante da vez era o mala. Não posso falar o nome dele, é um nome conhecido aqui em São Paulo e eu não quero encrencas para o meu lado.

Além da mania de botecos eu andava estudando música. Aproveitando que o sujeito não parava de falar em tecidos, e aproveitando que eu estava meio de pileque, me veio a idéia de tirar uma com a cara dele:

- Fulano, está me vindo à mente a idéia de uns versos, me dá um papel... tecidos, tecidos...Peguei um guardanapo e fingi que estava tirando uma idéia brilhante da cabeça:

Tecidos...ouvidos, isso, ouvidos, já sei, o apito da fábrica de tecidos...

Quando o apito
da fabrica de tecidos
vem ...tocar nos meus ouvidos?
Não! vem ferir os meus ouvidos, ferir é mais poético
eu me lembro de voce...

O babaca delirava!

E eu enchi de novo meu copo de cerveja, comi mais uns amendoins, e mandei ver na composição da linda melodia de Noel Rosa. Letra e musica, serviço completo. Eu “recebia” a canção como uma espírita psicografando uma mensagem do além. Devo ter pulado alguns versos ou mudado alguma coisa, do fundo da minha animação alcoólica.

- Puxa! Uma canção que tem a ver com a nossa atividade produtiva! Gente, eu não estou inventando, ele falou assim mesmo, nossa atividade produtiva... - Uma letra que fala do apito das nossas fábricas! Papai vai adorar. Você não quer vir comigo e cantar essa música para papai? Tem também minhas tias que chegaram do Líbano...

Ai meu São Noel dos bêbados pafúncios! Pedi mais uma cerveja.

Mas naquela altura da concentração etílica presente no meu sangue, eu já tinha cruzado a perigosa linha da sanidade. Fomos. Era uma imponente mansão no bairro de Higienópolis. Aquelas virtuosas paredes decerto jamais tinham visto uma pessoa tão cara de pau e tão bêbada.

E foi assim que Noel Rosa foi plagiado e massacrado, deve ter se virado no túmulo, o pobre.

Ah, gente, vamos combinar, quem não conhece essa maravilha de letra e música merece mesmo ser feito de idiota.

É desnecessário dizer que eles ficaram encantados. O meu amigo traduzia para as tias enquanto eu cantava, tinha um piano na casa, eu tasquei uns acordes de do mi sol e fa la do ridículos com a mão esquerda, pisei fundo no pedal, assassinei também com a mão direita, fiz pose de artista, e dei péssima conta da boa mentira.

Quando terminei, uma das velhotas tirou um broche antiquado da gola do vestido e colocou na minha mão.

O que não faz uma boa cachaça.

Felizmente fui transferida daquela agência, não vi o sujeito nunca mais, e todo pecado tem o seu castigo, não consegui dele nenhuma indicação.

O broche esteve comigo até bem pouco tempo, acabou virando comida na mesa numa manada de vacas magras que me visitou por ai. Castigo também, claro, de Papai do Céu. Mais do que merecido.

Fique com a
Maria Rita, que faz a coisa certa. Perdão, Noel.