sexta-feira, 11 de abril de 2008

Céu e Inferno

Mas é claro que o sol
Vai voltar amanhã
Mais uma vez, eu sei
Escuridão já vi pior
De endoidecer gente sã
Espera que o sol já vem


Recebi o diagnóstico na metade dos anos 90. Tarde, portanto. Se tivesse recebido o diagnóstico na flor da juventude, minha vida teria tido um enorme benefício. Isso porque eu teria sido impedida de fazer metade senão quase todas as besteiras que fiz. O bipolar é um indivíduo que se mete em muitas encrencas. No período depressivo, a pessoa não consegue encontrar forças para sair da cama. Tomar banho. Comer. Nesses casos, muitos acabam perdendo empregos, reprovando na escola, estragando relacionamentos, perdendo prazos, vivenciando perdas enfim. Tive muitas.

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim



No período eufórico, a pessoa sai achando que é invencível, que tudo é possível, que ela pode remover montes do lugar. Será que foi para elas o discurso a esse respeito proferido pelo Mestre? A verdade é que ninguém pode acusar o eufórico de não ter fé, tampouco coragem. Ele tem fé em tudo e em todos, nele mais que em ninguém. Então ele assume compromissos que não vai cumprir, faz dívidas que não poderá pagar, se envolve em relacionamentos que não conseguirá manter, e vai se atropelando dessa forma até o fim de sua vida, se não for devidamente alertado por alguém. Ou se não se matar. E a morte vale para ambos os lados: tanto o depressivo quanto o eufórico podem chegar à morte mais cedo.

Dizem que sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Se eles são bonitos, sou Alain Delon
Se eles são famosos, sou Napoleão
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser um normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu?!
Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Sim sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, eu sou feliz


Aos meus dezenove, vinte anos, e mesmo aos trinta, eu sentia que tinha alguma coisa. Mas quando comentava com amigos, e dizia que estava pensando em ir a um psiquiatra, vinha o conselho torto, a voz do preconceito: - Psiquiatra é médico de louco, ele vai lhe convencer que você é louca, ele irá lhe dar remédios que causam dependência, esqueça isso. Infelizmente eu esqueci, porém, fiquei sozinha para contabilizar o prejuízo quando o prejuízo chegou; aqueles amigos não estavam por perto para me ajudar, na hora da forte crise.

Me cansei de lero-lero
Dá licença mas eu vou sair do sério
Quero mais saúde
Me cansei de escutar opiniões
De como ter um mundo melhor
Mas ninguém sai de cima
Nesse chove-não-molha
Eu sei que agora
Eu vou é cuidar mais de mim!



O bipolar é um doente solitário, pois não existe simpatia da sociedade para esse tipo de doença. É mais fácil conseguir o apoio das pessoas quando se está com um braço ou perna quebrada, veio daí o conselho de uma divertida antiga colega de escritório: ela me aconselhou a comprar uma luva de gesso, daquelas usadas em teatro, e alegar um braço quebrado quando não estivesse bem. Numa situação dessas, ela dizia, todos deixam o acidentado em paz.

Mas como chegar no trabalho pela manhã e dizer: - não falem comigo, estou ciclando. Ciclar é passar de uma ponta à outra do humor, rapidamente, um inferno. Ou: - estou na baixa deprê, não quero falar com ninguém, quero morrer! É desemprego, na certa. E não faltarão conselhos: vá nadar, vá pescar, vá caminhar, vá dançar, vá transar. Ou - você precisa parar de esquentar a cabeça com problemas, é por isso que você fica assim. Ou então o mais "sábio" de todos: - abandone essas porcarias de remédios, são eles que estão te deixando assim. Dá vontade de mandar aquela pessoa dar esses sábios conselhos em uma clínica de tratamento de câncer, para pessoas dependentes de quimioterapia. Diga lá para os doentes: abandone essa droga de quimioterapia, vá nadar, vá passear, vá dançar. Diga ao diabético: pare de tomar insulina, arrume um namoro, a sua diabetes é falta de um novo amor...

Chora de manso e no íntimo... Procura
Curtir sem queixa o mal que te crucia
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura
Só a dor enobrece e é grande e é pura
Aprende a amá-la que a amarás um dia
Então ela será tua alegria,
E será, ela só, tua ventura...
A vida é vã como a sombra que passa...
Sofre sereno, e de alma sobranceira,
Sem um grito sequer, tua desgraça.
Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira...



Ou seja, rola preconceito, e do bom, do puro. Por outro lado, o bipolar, a menos que seja um artista famoso, não gosta de ficar falando disso, eu por exemplo não falo em momento algum, nem meus parentes sabem, até porque também eles não iriam se interessar. Então é apresentar esse humor variável, não dar explicações, mas colher as consequências disso. Como esperar que aceitem que, em um momento a pessoa está feliz, de bem com a vida, falante, comunicativa, e em outro não quer conversa com ninguém?

Então ele vive o seu inferno sozinho. Num dia, vontade de não falar com ninguém. Num outro, ou às vezes até no mesmo dia, vontade de sair dançando com o primeiro estranho que passa na rua. Situação muito bem explicada no filme Mr.Jones, protagonizado por Richard Gere.

Só eu sei...
As esquinas por que passei
Só eu sei...
Sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar?
Sabe lá...
E quem será
Nos arredores do amor
Que vai saber reparar
Que o dia nasceu?
Só eu sei...
Os desertos que atravessei
Só eu sei
Sabe lá
O que é morrer de sede em frente ao mar?
Sabe lá
Na correnteza do amor quem vai saber se guiar
A nave em breve ao vento vaga de leve e trás
Toda a paz que um dia o desejo levou
Só eu sei...



Felizmente conheci uma médica que me ensinou a reconhecer os sinais de perigo. A desenvolver o senso crítico, o bipolar quando fica eufórico, perde a autocrítica, fica inconveniente, age por impulso, eu, por exemplo, falo demais, e digo coisas que não deveria dizer, não só falando, mas escrevendo. Perdi duas preciosas amizades, inestimáveis, porque passei e.mail falando além da conta, passei do ponto, magoei demais. Perdas irreparáveis.

Felizmente também, e também graças a Dra.Elizabeth, tomo bem poucos remédios. E tenho usado minha inteligência a meu favor, para não virar vítima de mim mesma, e razoavelmente tenho conseguido. Meus sinais de alerta são quando começo a cantarolar mentalmente a mesma música repetidas vezes, o tempo todo. Ou quando sinto vontade de rir e chorar ao mesmo tempo.

Vou andar, vou voar
Pra ver o mundo
Nem que eu bebesse o mar
Encheria o que eu tenho de fundo



De resto, vou convivendo com a doença. Por conta disso, tenho uma mente incrivelmente rápida, razão pela qual às vezes introduzo um assunto achando que o meu interlocutor sabe de antemão o que eu estava pensando. Isso gera problemas, mas também me ajuda com a memória, tenho uma memória excelente. A mesma mente rápida também me impede de ler, o que eu sempre mais gostei de fazer. Porém, de uns dez anos para cá, não tenho conseguido. Minha velocidade de leitura é tanta, mas tanta, que me coloca em estado de ansiedade pelo fim do livro, sinto enjôo, preciso parar. Minha capacidade de concentração também é ruim, pois meu pensamento vai de abóbora a avião na velocidade do raio. Sofro de insônia crônica, pois à noite, fico pensando tanto que não consigo desligar o botão. Meu lado depressivo traz consigo dores na coluna, nos olhos, febre baixa, manchas no rosto, inapetência. Mas por incrível que possa parecer, já me acostumei a tudo isso, e sou até bastante eficiente no que faço, pois graças a Deus, meu senso de responsabilidade é alto. Tenho, como já disse, excelente memória, sou organizada, sou rápida nas tarefas, não sou de atrasar trabalhos, cumpro prazos, atendo a todos que me procuram, me esforço tremendamente para ser educada, até para ser perdoada lá na frente quando o mau momento chegar. Se existisse algo como bipolares anônimos, eu poderia dar o meu testemunho como uma bipolar que está conseguindo sobreviver, apesar de tudo.

Como vai? tudo bem!
Apesar, contudo, todavia, mas, porém
As águas vão rolar
Não vou chorar
Se por acaso morrer do coração
É sinal que amei demais
Mas enquanto estou viva
Cheia de graça
Talvez ainda faça
Um monte de gente feliz!

De cima para baixo: Renato Russo, Milton Nascimento, Arnaldo Baptista e Rita Lee, Roberto de Carvalho e Rita Lee, Manoel Bandeira, Djavan, Djavan, Roberto de Carvalho e Rita Lee.