Dentre as histórias bíblicas, as minhas favoritas são as que contam a respeito de Jesus de Nazaré. E dentre esses relatos, gosto muito de seus milagres. Os milagres de Jesus nos dão uma pista sobre com quais de nossas dificuldades Ele mais se identifica. Na verdade Jesus se identifica com todas, porém mesmo assim, é interessante analisar o conjunto de seus milagres.
Desses milagres, destaco dois, para mim os mais geniais. O primeiro, que foi realmente o primeiro, foi a transformação de água em vinho. Jesus chega numa festa que está ameaçando terminar num fiasco, pois que o vinho estava acabando, e transforma seis pipas de água choca do deserto em puro e excelente vinho. Posso até imaginar como essa festa acabou! O que Jesus fez foi dar uma levantada no astral da festa, esse é o meu homem!
O outro milagre traz o ingrediente do pão de hoje: a cura do endemoninhado gadareno.
Gadara era um povoado minúsculo. Não esperem de mim definições geográficas, já deixei há muito tempo a Escola Dominical. Mas devia ser algo menor que um ponto no mapa, se é que Gadara estava em algum mapa. Seria qualquer coisa do tamanho de uma Praça da Sé, e acho até que estou exagerando.
Contam os evangelistas, que Jesus entrou na cidade, e imediatamente veio ao encontro dele um pobre homem, vítima de uma terrível doença mental. Essa doença o afastava completamente do convívio social; ele vivia entre as pedras dos sepulcros. Trazia o corpo todo cortado, ele mesmo se feria com pedras. E vivia nu. Talvez seus parente e amigos tenham tentado contê-lo para o bem dele mesmo, porque a história diz que ele era freqüentemente atado com correntes, correntes que ele rompia, devia ser um homem forte. E vivia assim, como um animal, ninguém o ajudava porque ninguém podia com ele.
Naquele tempo, doenças desse tipo eram chamadas de demônios. Contam os evangelhos que Jesus não perdeu tempo conversando com o sujeito, foi logo conversando com a doença dele, perguntou o seu nome. A doença falou pela boca do homem: nosso nome é Legião, porque somos muitos. Jesus então foi logo ordenando àquela doença que se retirasse daquele pobre homem. Então aquela doença, ou aqueles demônios, ou aquele “algo” falou com Jesus, que se fossem expulsos, gostariam de poder entrar numa manada de porcos, que pastava por ali.
Então se deu o fato espantoso dessa história: Jesus concordou! Ordenou aos demônios que entrassem nos porcos. E aqueles porcos, que São Marcos dá conta de serem perto de dois mil, despencaram por um desfiladeiro abaixo. Tremo só em pensar na enorme montanha de porcos espalhada pelo pequeno povoado. Então temos a nossa história assim: de um lado, um homem curado, ajuizado, já vestido, falando perfeitamente. Novinho em folha. De outro, uma montanha de porcos mortos. Paremos por aqui.
Moro num pequeno bairro, poderia dizer que é do tamanho da tal cidadezinha. Então fico imaginando, entre sádica e divertida, eu, euzinha, vivendo uma situação dessas, se algo parecido com isso acontecesse nos dias de hoje. Imagino-me saindo para o trabalho, digamos, numa quinta feira, atrasada como sempre, cansada como sempre, estressada como sempre. Quando vou pisar na calçada, não consigo, está lá um amontoado de carniça de porcos mortos. E ratazanas. E baratas. E no alto, um bando de urubus.
- O quê?! Mas o que é isso? Jesus o quê?! Jesus de onde?!! De Nazaré??!! Então porque ele não faz esse tipo de performance em Nazaré? Porque fazer isso aqui?? Se ele é tão “poderoso” como se falam, porque ele não tirou esses porcos daqui com a mágica dele? O quê?! Uma vida foi salva? E isso resolve os meus problemas?! E o meu ônibus, como vou tomar meu ônibus? Alguém já ligou para a Administração Regional? Alguém vai pagar por isso, ah vai!!
Querido leitor! Se você me acompanhou até aqui, eu tenho duas coisas para lhe dizer. A primeira é: muito obrigada por me prestigiar, acredite, sou muito feliz pela sua presença. A segunda é: se você está escandalizado comigo, pensando – Oh! Que mulher má! Afinal, trata-se de uma vida liberta de uma doença terrível, tudo bem que os porcos estão transtornando a vida dela, mas ela poderia ser um pouquinho mais compreensiva...
Ok! Então, eu lhe convido a me acompanhar numa história nada fictícia.
Local: Metrô de São Paulo. Horário: de pico.
Qualquer usuário, mesmo o mais desatento, já terá notado que de uns tempos para cá, tem aumentado o número de suicídios. Só este ano eu estive por perto em três. A situação é de todos conhecida: A composição pára, as luzes apagam, ficamos uns instantes sem explicação. Mas aí vem a voz: - Estamos parados em virtude de acesso de usuário à via. Acesso de usuário à via é o eufemismo utilizado por eles para explicar que alguém saltou para fora da ponte e da vida, como diria João Cabral de Melo Neto.
É verdade que nesses momentos, eu murmuro em meu íntimo uma pequena prece. Mas é verdade também, que algo socado lá dentro de mim, que eu chamaria de espírito de porco, pensa assim: Putz, logo agora?...
E sempre tem um mais cara-de-pau que verbaliza: “ISSO É HORA DE ALGUÉM SE MATAR, NÃO PODERIA SE MATAR AO MEIO DIA!?” E uns três ou quatro passageiros dão um risinho nervoso de concordância.
Então a coisa fica assim. Enquanto nós, estressados e calorentos, conferimos no relógio a extensão do nosso atraso, lá na frente, funcionários mais que preparados para isso, estão retirando aquele cadáver, ou o que sobrou dele, dos ferros e dormentes, talvez até a poder de ácido e ferramentas, não sei, nunca vi. Em pouco tempo a composição segue, passamos por cima das manchas do que foi uma vida, e ao chegarmos ao nosso destino, antes, ao passarmos pelo bloqueio, já esquecemos o fato totalmente. Somos assim, insensíveis, egoístas, umbigocentristas.
Eu sei o que você irá dizer: - O que eu posso fazer, a vida segue! Concordo com você, a vida segue. Eu também, infelizmente, não tenho outra coisa a dizer nesse caso.
Mas agora creio que você já tem mais elementos para entender a minha hipotética irritação matinal com o hipotético milagre de Jesus despejando montanhas de porcos na rua da minha casa.
Eu nunca tive a intenção de explicar a bíblia, gosto apenas de recontar suas histórias, mas nesse caso, eu me atreveria a dizer que talvez Jesus tivesse feito a coisa dessa maneira complicada, para que ficasse registrado por séculos e séculos, a quantidade de lixo que pode caber dentro de uma única pessoa.
Os evangelistas finalizam a história contando que Jesus foi agarrado pelos colarinhos, e levado até os limites da cidade, para que tomasse e seu rumo e não voltasse nunca mais.
O que mais me chateia nessa história toda, e me leva à náusea, é saber que se eu estivesse lá, teria me comportado exatamente da mesma maneira.
Desses milagres, destaco dois, para mim os mais geniais. O primeiro, que foi realmente o primeiro, foi a transformação de água em vinho. Jesus chega numa festa que está ameaçando terminar num fiasco, pois que o vinho estava acabando, e transforma seis pipas de água choca do deserto em puro e excelente vinho. Posso até imaginar como essa festa acabou! O que Jesus fez foi dar uma levantada no astral da festa, esse é o meu homem!
O outro milagre traz o ingrediente do pão de hoje: a cura do endemoninhado gadareno.
Gadara era um povoado minúsculo. Não esperem de mim definições geográficas, já deixei há muito tempo a Escola Dominical. Mas devia ser algo menor que um ponto no mapa, se é que Gadara estava em algum mapa. Seria qualquer coisa do tamanho de uma Praça da Sé, e acho até que estou exagerando.
Contam os evangelistas, que Jesus entrou na cidade, e imediatamente veio ao encontro dele um pobre homem, vítima de uma terrível doença mental. Essa doença o afastava completamente do convívio social; ele vivia entre as pedras dos sepulcros. Trazia o corpo todo cortado, ele mesmo se feria com pedras. E vivia nu. Talvez seus parente e amigos tenham tentado contê-lo para o bem dele mesmo, porque a história diz que ele era freqüentemente atado com correntes, correntes que ele rompia, devia ser um homem forte. E vivia assim, como um animal, ninguém o ajudava porque ninguém podia com ele.
Naquele tempo, doenças desse tipo eram chamadas de demônios. Contam os evangelhos que Jesus não perdeu tempo conversando com o sujeito, foi logo conversando com a doença dele, perguntou o seu nome. A doença falou pela boca do homem: nosso nome é Legião, porque somos muitos. Jesus então foi logo ordenando àquela doença que se retirasse daquele pobre homem. Então aquela doença, ou aqueles demônios, ou aquele “algo” falou com Jesus, que se fossem expulsos, gostariam de poder entrar numa manada de porcos, que pastava por ali.
Então se deu o fato espantoso dessa história: Jesus concordou! Ordenou aos demônios que entrassem nos porcos. E aqueles porcos, que São Marcos dá conta de serem perto de dois mil, despencaram por um desfiladeiro abaixo. Tremo só em pensar na enorme montanha de porcos espalhada pelo pequeno povoado. Então temos a nossa história assim: de um lado, um homem curado, ajuizado, já vestido, falando perfeitamente. Novinho em folha. De outro, uma montanha de porcos mortos. Paremos por aqui.
Moro num pequeno bairro, poderia dizer que é do tamanho da tal cidadezinha. Então fico imaginando, entre sádica e divertida, eu, euzinha, vivendo uma situação dessas, se algo parecido com isso acontecesse nos dias de hoje. Imagino-me saindo para o trabalho, digamos, numa quinta feira, atrasada como sempre, cansada como sempre, estressada como sempre. Quando vou pisar na calçada, não consigo, está lá um amontoado de carniça de porcos mortos. E ratazanas. E baratas. E no alto, um bando de urubus.
- O quê?! Mas o que é isso? Jesus o quê?! Jesus de onde?!! De Nazaré??!! Então porque ele não faz esse tipo de performance em Nazaré? Porque fazer isso aqui?? Se ele é tão “poderoso” como se falam, porque ele não tirou esses porcos daqui com a mágica dele? O quê?! Uma vida foi salva? E isso resolve os meus problemas?! E o meu ônibus, como vou tomar meu ônibus? Alguém já ligou para a Administração Regional? Alguém vai pagar por isso, ah vai!!
Querido leitor! Se você me acompanhou até aqui, eu tenho duas coisas para lhe dizer. A primeira é: muito obrigada por me prestigiar, acredite, sou muito feliz pela sua presença. A segunda é: se você está escandalizado comigo, pensando – Oh! Que mulher má! Afinal, trata-se de uma vida liberta de uma doença terrível, tudo bem que os porcos estão transtornando a vida dela, mas ela poderia ser um pouquinho mais compreensiva...
Ok! Então, eu lhe convido a me acompanhar numa história nada fictícia.
Local: Metrô de São Paulo. Horário: de pico.
Qualquer usuário, mesmo o mais desatento, já terá notado que de uns tempos para cá, tem aumentado o número de suicídios. Só este ano eu estive por perto em três. A situação é de todos conhecida: A composição pára, as luzes apagam, ficamos uns instantes sem explicação. Mas aí vem a voz: - Estamos parados em virtude de acesso de usuário à via. Acesso de usuário à via é o eufemismo utilizado por eles para explicar que alguém saltou para fora da ponte e da vida, como diria João Cabral de Melo Neto.
É verdade que nesses momentos, eu murmuro em meu íntimo uma pequena prece. Mas é verdade também, que algo socado lá dentro de mim, que eu chamaria de espírito de porco, pensa assim: Putz, logo agora?...
E sempre tem um mais cara-de-pau que verbaliza: “ISSO É HORA DE ALGUÉM SE MATAR, NÃO PODERIA SE MATAR AO MEIO DIA!?” E uns três ou quatro passageiros dão um risinho nervoso de concordância.
Então a coisa fica assim. Enquanto nós, estressados e calorentos, conferimos no relógio a extensão do nosso atraso, lá na frente, funcionários mais que preparados para isso, estão retirando aquele cadáver, ou o que sobrou dele, dos ferros e dormentes, talvez até a poder de ácido e ferramentas, não sei, nunca vi. Em pouco tempo a composição segue, passamos por cima das manchas do que foi uma vida, e ao chegarmos ao nosso destino, antes, ao passarmos pelo bloqueio, já esquecemos o fato totalmente. Somos assim, insensíveis, egoístas, umbigocentristas.
Eu sei o que você irá dizer: - O que eu posso fazer, a vida segue! Concordo com você, a vida segue. Eu também, infelizmente, não tenho outra coisa a dizer nesse caso.
Mas agora creio que você já tem mais elementos para entender a minha hipotética irritação matinal com o hipotético milagre de Jesus despejando montanhas de porcos na rua da minha casa.
Eu nunca tive a intenção de explicar a bíblia, gosto apenas de recontar suas histórias, mas nesse caso, eu me atreveria a dizer que talvez Jesus tivesse feito a coisa dessa maneira complicada, para que ficasse registrado por séculos e séculos, a quantidade de lixo que pode caber dentro de uma única pessoa.
Os evangelistas finalizam a história contando que Jesus foi agarrado pelos colarinhos, e levado até os limites da cidade, para que tomasse e seu rumo e não voltasse nunca mais.
O que mais me chateia nessa história toda, e me leva à náusea, é saber que se eu estivesse lá, teria me comportado exatamente da mesma maneira.