sexta-feira, 4 de abril de 2008

João e Maria

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês


Por um longo tempo de minha vida fui bancária. Bancário tem fama de não fazer nada, e às vezes sou obrigada a admitir que isso é mesmo verdadeiro. Todo final de tarde, lá pelas cinco da tarde, eu, Sandra e Rosana, nos reuníamos para jogar conversa fora. Mas era um jogar conversa fora divertido. Nós inventamos uma brincadeira, que era fazer variações em cima de nossos sonhos, e contá-los como se fossem verdades. Todo final de tarde, nós atualizávamos por assim dizer as novidades sobre nossas supostas atividades, e como tínhamos a faca e o queijo da imaginação nas mãos, a conversa rendia muito. Adultas brincando de faz de conta, de era uma vez.

Sandra era flautista, tinha sonhos de se tornar uma concertista famosa. Rosana se contentaria no próprio banco mesmo, ela sonhava vir a ser uma super gerente, daquelas que têm as contas mais importantes da cidade em sua carteira de clientes. E eu sonhava em montar uma escola para crianças, bem modernosa, ao estilo Rudolf Steiner.

Então a imaginação corria solta. Sandra dava a conta de todos os compromissos de sua agenda, que corria de vento em popa pela Europa. Rosana contava dos almoços e jantares com clientes importantes, negócios e reuniões a agendar. Eu, falava das idéias que andava tendo para incrementar o currículo de minha escola. E fazíamos isso com tamanha riqueza de detalhes, que a brincadeira acabou se tornando um divertido gosto, chegávamos a parar de falar para dar risada daquilo tudo.

Mas o que Sandra e Rosana não sabiam, e vocês saberão agora, é que essa brincadeira eu já fazia há muito tempo, muito tempo mesmo. Eu explico.
A noiva do cowboy
Era você, além das outras três

Venho de um lar super complicado. Para não perder tempo em detalhes cruéis, posso sintetizar dizendo que nosso lar era um pedacinho do inferno. Então creio que a menina que eu fui encontrou um jeito de escapar daquilo tudo, criando um mundo paralelo. Foi assim que, não me lembro como aquilo começou, mas foi assim que eu passei a viver em pensamento dentro de uma novela, com paisagens, casas, personagens e suas famílias, dramas, comédias, todo tipo de situação virtual.
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e os seus canhões


Meus personagens foram evoluindo comigo. Foram crescendo. Noivando. Casando. Tendo filhos. Netos. Morrendo. Ressuscitando. Claro! Sendo eu o próprio deus de minha história, eu podia fazer com eles o que quisesse. Então era muito comum eu dar os retoques que quisesse, melhorar ou piorar o caráter deste ou daquele, matá-lo, arrepender e ressuscitá-lo, ir e vir no tempo, como cabe a um bom deus.
Guardava o meu bodoque e ensaiava um rock
Para as matinês


Cheguei a contar tudo isso para uma de minhas muitas terapeutas, mas ela acabou comigo, dizendo que eu não me satisfazia com nenhum papel que não fosse o papel do próprio Deus. Mas tem papel melhor? Abandonei aquela analista.
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz


Não foi assim com minha querida Doutora Elizabeth, ela quase caiu da cadeira quando contei que fui eu quem inventou o celular, ela teve um ataque de riso. Mas é verdade! Os meus personagens, lá pelos anos 70, já possuíam um aparelho de telefone de se levar na bolsa ou no bolso.E como eu gostava muito dos meus programinhas de televisão, e os meus personagens também, eu inventei uma maneira de eles viajarem pelo mundo sem perderem o horário dos seriados favoritos, inventando assim algo parecido com a Internet ou TV a cabo. Se não me engano também, lá pelo comecinho dos anos 70, os meus telefones quando tocavam, já tinham uma luzinha que acendia. E meus personagens já se comunicavam pelo aparelho de TV. Claro que tive uma ajuda boa dos Jetsons, Perdidos no Espaço e Jornada nas Estrelas. Mas além dos Jetsons, fui somente eu! quem teve a idéia de levar toda essa parafernália para o ambiente doméstico. Se Bill Gates tivesse me conhecido naquele tempo, ele teria ficado milionário bem antes. Meus aparelhos de TV naquele tempo já funcionavam como câmeras ocultas, e eu ainda nem tinha lido 1984, o tal do Grande Irmão.
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz

As minhas personagens freqüentavam salões de beleza que possuíam, ao invés de espelho, uma tela de circuito interno de TV, cuja câmera elas podiam mudar de ângulo pelo controle remoto. Isso nos meus quinze anos de idade! Eu vim a confirmar isso na TV não faz muito tempo. Para mim isso já existia há uns quarenta anos, no mínimo. Também criei para elas uma roupa que podia ser recarregada em uma bateria, então a roupa se iluminava, muito bacana para se dançar na noite. Isso também eu vi recentemente em alguma revista ou programa de TV. E muitas outras engenhocas mais, eu ficaria aqui um bom tempo contando.

E assim o tempo foi passando, meus personagens foram mudando comigo. Foram envelhecendo, foram se tornando mais politicamente corretos, foram adquirindo novos conhecimentos, eu diria.
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país


Se tenho vergonha de contar isso aqui? Sim, confesso que tenho sim. Mas já era mais do que o momento de expor esses fantasminhas, portanto aí estão eles.

Existe algo bom nisso tudo? Claro, sempre existe. De alguma maneira serviu para aquela menina assustada e acuada num lar cruel ter um lugar de refúgio, um cantinho só dela, um mundo onde as coisas não eram caóticas e as pessoas não eram dementes como aquelas com quem ela convivia.

O ruim foi que aquela menina esqueceu de olhar para fora, por conta disso ela teve uma grande perda da visão, e até um ligeiro estrabismo. De tanto olhar sem ver. E aquela garota também não conseguiu, e não consegue até hoje, se acostumar com as coisas daqui. Com a fealdade deste mundo. Com a sujidade das ruas, das praças e das fachadas das casas. Com a desordem, com a bagunça, com a incompetência generalizada da sociedade em que ela convive, com a gritante falta de educação das pessoas. Com a pobreza das idéias. Com a falta de classe, de elegância, de cerimônia entre as pessoas. Com a crueza deste mundo aqui. Tudo muito normal, todo mundo está acostumado a isso. Mas eu não, eu não aprendi. Porque lá no meu mundo, até os vilões tinham estilo.
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido

Ainda hoje, quando estou no limite do cansaço, ou do desânimo, me pego nos jardins de alguma mansão dos meus sonhos, conversando com algum personagem interessante. Ou imaginando um novo final para algum tópico. Posso escolher a cena que quero, como quem escolhe num menu de opções. E posso ficar nela o tempo que quiser.
Vem, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
Quando desabafo com alguma amiga ou parente do meu cansaço, do meu estresse, da minha vontade louca de sumir para bem longe, a pessoa acha que estou falando de qualquer coisa que ela também está vivendo, diz que entende, que com ela também é assim, e imediatamente passa a falar de seus próprios problemas, é assim que os amigos fazem sempre, não é mesmo? Mas o que aquela pessoa desconhece é que eu padeço de saudades. Saudades de um paraíso que eu perdi antes mesmo de conquistar. Porque esse paraíso existe somente dentro de mim.

Normalmente aquela amiga ou parente após me ouvir, me aconselha a ter paciência porque Jesus logo irá voltar, e nos levar com Ele, e acabar com todo nosso sofrimento. Esse pensamento sim, me anima. Mas nunca conto para essa pessoa como eu espero que seja esse retorno, mas agora conto aqui para vocês.

Jesus foi embora dizendo que na casa do Pai dele existiam muitas mansões, certo? E que Ele voltaria para nos buscar para ir morar numa delas, certo? Como eu penso que Jesus não mentiria em algo assim tão sério, acredito firmemente que existe um lugar feito sob medida para mim, pois Jesus sendo Deus, sabe exatamente o que é o paraíso para mim.

Tanto espero que Ele volte, que em um de meus cenários, há um portal, lindo, todo incrustado de pedras preciosas, por onde nunca passou ninguém, esperando por sua passagem. E há uma cadeira também, finamente forrada em sedas e bordada com fios de ouro e pedras preciosas, para Ele se assentar. Tudo isso está numa Torre, mas isso eu já não quero contar.
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido

Então se Jesus vem me buscar, o mínimo que eu espero, é que Ele me leve ao cenário da minha imaginação, com todos os detalhes e personagens da loucura da minha imaginação, algo diferente disso não precisa nem vir. E que toda a minha eternidade eu possa passar ali, no local perfeito que eu idealizei. Na companhia das pessoas que eu criei para mim. Nos meus tempos de protestante, eu dizia que esperava a vinda dEle, “para juntos instaurarmos aqui na Terra um mundo de paz, amor, verdade e justiça”. Tudo mentira. O que eu sempre desejei, na verdade, foi encostar para sempre na paisagem dos meus sonhos de infância.

Assim então eu concordo, e digo: que Ele venha! Ele é de longe o personagem mais esperado de minha existência.

Se Ele não quiser vir pessoalmente me buscar, eu dou a opção de uma variação desse tema: Assisti em minha infância um filme, contando a vida de Mark Twain. Mark Twain foi um escritor de livros infantis americano, algo assim como o Monteiro Lobato de lá. Mas sem o comunismo e o ateísmo disfarçado. Pois bem. Nesse filme, quando ele morre, seus personagens vêm buscá-lo, na beira de sua cama. Vem o Tom Sawyer, vem o Huckleberry, vem a Becki. Eles o tomam pela mão, e o conduzem por um lindo caminho iluminado. O filme acaba assim.

Este final também está bom para mim, podia ser assim. Claro que não sou assim tão desapegada do mundo real: meus cachorros de infância, e minhas bonecas, poderiam também vir me buscar.
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim