terça-feira, 22 de abril de 2008

A oraçãozinha

Ao contrário das crianças atuais, eu fui uma menina muito bobinha, tonta mesmo. Acreditava piamente nas bobagens que os adultos diziam. E os adultos do meu tempo, por sua vez, tinham a péssima mania de assustar as crianças. Depois quando a gente gasta uma fortuna em terapias, ninguém entende.

Voltávamos de um passeio à noitinha, de ônibus. Ao longe, havia uma queimada. Devia ser uma pequena queimada, mas aos olhos de uma criança, tudo é grande. Minha mãe comentou com minhas primas, essas já grandinhas: Olha, se continuar assim, vai pegar fogo em todo o bairro.

Foi então que por muitas e muitas noites, minha oração foi essa: Papai do céu, não deixe pegar fogo no bairro amém.

Não sei por quanto tempo fiz essa tola oração. Deve ter sido até eu substituí-la por essa outra:

Os adultos discutiam a novidade: todo cidadão teria que ter um documento chamado CIC, que mais tarde vim saber que era o tal cartão de identificação do contribuinte. Meu pai que era e é mais teimoso que uma mula, dizia que governo nenhum iria obrigá-lo a tirar o tal documento. Mas alguém, acho que uma tia, argumentou: mas daqui para a frente, ninguém poderá fazer nenhuma transação sem o tal documento. Vocês não estão tentando tirar a escritura da casa? Então, sem esse documento vocês não tiram, e sem escritura, podem perder a casa.

Aquilo me apavorou. Perder a casa? Corri para minha mãe. E ela era especialista naquela mania de mau gosto, que era a de assustar crianças, ou deixá-las sem maiores explicações. Distraída, ela falou assim:

- E daí? Nós iremos morar em tendas. Você não leu na bíblia que as pessoas antigamente moravam em tendas?

Jesus misericordioso, pensei eu. Nossa vida já era uma desgraça morando naquela casinha miserável, imagina então morarmos numa tenda, naquele bairro pavoroso, sem iluminação e enlameado. Então veio daí minha nova oração: Papai do céu, não deixe a gente morar em tendas amém. Devo ter feito essa prece por meses e meses.

No filme Forrest Gamp, a Jenny leva o Forrest ao quintal, numa plantação, ajoelham, e ela ora assim: Papai do céu, me transforme num passarinho, para eu sair voando daqui. Aquela oração de uma certa forma foi atendida; na seqüência do filme a gente vê a menina sendo levada para longe daquela errada situação familiar.

Ao longo de minha desgraçada infância, lembro-me de ter feito muitas orações pedindo socorro a papai do céu, muitas até meio parecidas com as da Jenny. Mas daquelas orações, papai do céu só ouviu mesmo aquelas onde eu pedi para não pegar fogo no bairro, e não irmos morar em tendas. As outras, ele não ouviu não.

No primeiro texto que escrevi, o ponto final era no parágrafo acima. Mas reli, e vi que se terminasse assim, seria apenas mais uma de minhas queixas, mais um lamento puro e simples, que faria você ficar com peninha de mim, mas que não acrescentaria nenhuma informação de ordem prática.

Então para transformar essa queixa numa informação de relevância, o meu conselho é: Esforce-se por praticar um olhar mais atento à sua volta. É impressionante a indiferença de certos adultos, a indiferença das famílias, dos vizinhos, e pasme, até das igrejas. Apesar de toda a informação existente, ainda é impressionante a indiferença para com as crianças, de um modo geral. Mas acredite, podem existir crueldades e até mesmo abusos, sendo cometidos contra crianças muito mais perto de você do que você pensa. A trajetória de Jenny, do filme Forrest Gump, dá um exemplo do que pode acontecer com essas vítimas, na grande maioria dos casos.