Antigamente o bairro onde moro não tinha as ruas iluminadas, então as casas tinham a lâmpada de fora, todas tinham a sua. Como moro num vale, ao voltar para casa à noite vindo de qualquer ponto do alto, eu via lá embaixo um mar de luzinhas, e achava aquilo lindo demais.
Geralmente éramos eu e meu irmão voltando de alguma visita a parentes com minha mãe. Nossa casa estava muito longe de ser o melhor lugar do mundo, e na grande maioria dessas noites, voltar para casa era sempre inquietante. Ficava tentando imaginar se em todo aquele mar de luzinhas existiria outra menina morando numa casa tão triste como a minha. Na verdade eu não pensava exatamente assim, eu não era muito boa em articular pensamentos. Algo me dizia que eu não era exatamente uma menina feliz, mas meu pensamento não passava disso. Então eu me punha a imaginar como viveriam as meninas das outras luzinhas.
Hoje as casas não iluminam mais o caminho de quem passa. E as construções assobradadas, as fábricas e os edifícios se impondo na paisagem, levaram dos nossos olhos aquela conformação de vale. Só sabe que aqui é um vale quem nasceu aqui, ou seja, eu, e uns poucos outros.
Todos construiram altos muros, as casas se escondem umas das outras, e ninguém acende luz para mais ninguém. O que não me impede de ainda hoje ficar olhando para as casas com aquele meu olhar antigo de menina. Como vivem hoje os donos das antigas luzinhas?
Cada luzinha uma história, vou pensando quando retorno à noite para o meu bairro escuro, sempre negligenciado pela companhia de luz. E como moradora antiga, conheço alguns dramas. Ali mora dona Irene, ela tem dois filhos na prisão. Aquela outra é a casa do seu Gustavo, suas três filhas casadas voltaram para morar com ele, com seus maridos e filhos, não conseguiram arcar com os custos de aluguel. Então ele foi construindo os tais puxadinhos, a casa dele foi crescendo para os lados. E ainda os ajuda, com a sua magra aposentadoria. Ali mora a Emilia, seus pais faleceram, ela ficou só, é solteira. Tem a minha idade, mas aparenta mais. Sei essas histórias porque sei, não porque as pessoas fiquem contando.
Talvez de suas casas eles falem de mim também, e minha história deve ser aos seus olhos tão destituida de emoção quanto outra qualquer.
Gente. Gentes e suas histórias simples que não interessam de fato a ninguém, talvez nem a eles próprios. Histórias sem emoção, relatos simples de sobrevivência, nada mais. Talvez dona Irene venha a morrer sem receber de volta seus dois filhos. O seu Gustavo também pode ir embora à qualquer momento, deixando para trás apenas uma briga por questões de herança e as saudades do dinheiro da sua aposentadoria. E a Bete um dia talvez fique tão solitária como a Emilia.
Até o dia em que a minha luzinha se apague também.
Geralmente éramos eu e meu irmão voltando de alguma visita a parentes com minha mãe. Nossa casa estava muito longe de ser o melhor lugar do mundo, e na grande maioria dessas noites, voltar para casa era sempre inquietante. Ficava tentando imaginar se em todo aquele mar de luzinhas existiria outra menina morando numa casa tão triste como a minha. Na verdade eu não pensava exatamente assim, eu não era muito boa em articular pensamentos. Algo me dizia que eu não era exatamente uma menina feliz, mas meu pensamento não passava disso. Então eu me punha a imaginar como viveriam as meninas das outras luzinhas.
Hoje as casas não iluminam mais o caminho de quem passa. E as construções assobradadas, as fábricas e os edifícios se impondo na paisagem, levaram dos nossos olhos aquela conformação de vale. Só sabe que aqui é um vale quem nasceu aqui, ou seja, eu, e uns poucos outros.
Todos construiram altos muros, as casas se escondem umas das outras, e ninguém acende luz para mais ninguém. O que não me impede de ainda hoje ficar olhando para as casas com aquele meu olhar antigo de menina. Como vivem hoje os donos das antigas luzinhas?
Cada luzinha uma história, vou pensando quando retorno à noite para o meu bairro escuro, sempre negligenciado pela companhia de luz. E como moradora antiga, conheço alguns dramas. Ali mora dona Irene, ela tem dois filhos na prisão. Aquela outra é a casa do seu Gustavo, suas três filhas casadas voltaram para morar com ele, com seus maridos e filhos, não conseguiram arcar com os custos de aluguel. Então ele foi construindo os tais puxadinhos, a casa dele foi crescendo para os lados. E ainda os ajuda, com a sua magra aposentadoria. Ali mora a Emilia, seus pais faleceram, ela ficou só, é solteira. Tem a minha idade, mas aparenta mais. Sei essas histórias porque sei, não porque as pessoas fiquem contando.
Talvez de suas casas eles falem de mim também, e minha história deve ser aos seus olhos tão destituida de emoção quanto outra qualquer.
Gente. Gentes e suas histórias simples que não interessam de fato a ninguém, talvez nem a eles próprios. Histórias sem emoção, relatos simples de sobrevivência, nada mais. Talvez dona Irene venha a morrer sem receber de volta seus dois filhos. O seu Gustavo também pode ir embora à qualquer momento, deixando para trás apenas uma briga por questões de herança e as saudades do dinheiro da sua aposentadoria. E a Bete um dia talvez fique tão solitária como a Emilia.
Até o dia em que a minha luzinha se apague também.