DÉCIMO E ÚLTIMO EXAME: O CÉREBRO
Adão se encaminha para o seu último exame. O número de folhas de papel que carrega já é considerável. Ele está bastante cansado. Estende um papel ao examinador, que logo lhe pergunta:
- De quê você se recorda?
Eu me recordo do amor que não vivi
da alegria que nunca tive
da vontade de realizar algo
que nem mesmo sei o quê.
Eu me recordo de uma canção
que nunca aprendi
de um jardim
onde nunca estive
de um fruto que eu nunca comi.
Eu me recordo
de um irmão que eu nunca abracei
da mulher
a quem eu nunca amei
da emoção real
que eu nunca conheci.
Até aqui só vivi a ilusão
de acreditar-me grande e forte
de acreditar-me capaz
de encontrar sozinho
o caminho de volta...
Mas não! confesso que me perdi
confesso que a vida inteira
me esqueci
esqueci meu nome
e meu sobrenome
esqueci os limites
do meu lugar.
E só tenho feito vagar a esmo
vivendo com um nome falso
dentro de um reino falso
que não é o meu.
Mas desejo de volta
minha real lembrança
desejo conhecer meu nome
desejo abarcar com a vista
a extensão do meu paraíso
Desejo me transformar
no meu próprio fruto
e prová-lo resoluto
e me saciar de mim.
Entra uma enfermeira, que coloca cerimoniosamente em sua cabeça uma touca de hospital. Ela em seguida lhe ajeita o avental e a máscara. O examinador, também respeitoso, lhe entrega o papel assinado. Saem.
Essa é uma parte, quase os instantes finais da peça “A maçã”, que escrevi nos anos 90, para um grupo de teatro de São Caetano do Sul, e que graças aos céus não foi representada. Deus é bom. Se você achou estranho é porque não leu o resto da peça. Se eu tiver paciência ou coragem, creio que mais esse último, eu a apresento aqui para vocês, para talvez me livrar dela.