quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A oração vazia


“Que sentido tem as coisas? – o grande mentecapto perguntou a si mesmo, sentando-se num banco da nave àquela hora vazia, e veio-lhe de súbito a consciência da própria mentecapcidade, tão despropositada quanto a minha ousadia em escrever semelhante palavra. Não entendia mais nada de nada – e tal desentendimento o atingia tão fundo, que Geraldo Viramundo pôs-se a chorar.

O leitor deve estar lembrado de crise semelhante, que o assaltou, anos antes, quando era pouco mais que um adolescente, também numa igreja, ou, mais precisamente, na capela do seminário em Mariana. Mas daquela feita o choro era fruto de suas meditações, ao passo que agora decorria de constatação nascida da mesma dúvida que o levara, em menino, a interpelar o padre Limeira em Rio Acima: meditar em que? Não havia mesmo nada sobre que meditar, concluía agora. Sentia-se completamente vazio por dentro, numa solidão sem remédio.”


O Grande Mentecapto – Fernando Sabino

Se eu soubesse falar desse vazio que sinto dentro de mim, estava pronta aí uma bela postagem. Mas se eu soubesse falar de vazio eu não tinha vazio, e não estaria aqui falando sobre isso.

Meditar em que? É essa mesmo a pergunta que sempre me fiz.

Quando a lucidez me assalta, como disse Clarice Lispector, eu me dou conta de que há um vazio imenso dentro de mim, mas a lucidez não consegue fazer nada frente ao vazio, só constatar que há o vazio.

Então eu peço a Deus que me ajude a viver com o meu vazio. E que seja este vazio a minha oração. Porque eu cansei de fazer as orações dos outros.

Se Deus for esse Deus que falam por aí, que espera de mim orações performáticas, eu estou realmente metida numa grande encrenca. Se ele esperar de mim posturas vigilantes, atentas, aí o meu caso é mais perdido ainda. Como eu invejo minhas amigas que possuem caderninhos de oração... Eu já me daria por feliz se conseguisse manter um caderninho de anotar coisas.

Sou uma filha vazia de mente vazia, meu Deus. Não sei, absolutamente, em quê pensar, e muito menos o que rezar.

O mais perto de Ti que consigo chegar é quando estou escrevendo aqui. Fora disso, a sensação que tenho é que nem existo...

Tem misericórdia de mim.


Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me ocorreu antes

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me de novo a consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Clarice Lispector