segunda-feira, 9 de junho de 2008

A inspiração


 
Onde você busca inspiração para criar seus quadros? Era a repórter pra lá de inexperiente que perguntava, nervoso microfone em punho, demonstrando ter saído recentemente de uma faculdade, onde devia ter aprendido muito pouco, a julgar pela pergunta destituída de conteúdo, coisa comum, aliás, no jornalismo de hoje em dia.

Responde o pintor: - Eu busco inspiração em minha família, em minha mulher e em meus filhos. Preciso pintar bons quadros, para que as pessoas gostem, e comprem. Quando isso acontece, eu ganho dinheiro, e com esse dinheiro posso sustentar aqueles que amo.

A mim só faltou levantar do sofá da sala e aplaudir. Pela primeira vez eu via um artista dar uma resposta comum, uma resposta de gente. Porquê será que eles preferem nos passar a impressão de que vivem no Olimpo, acima de nossas comezinhas preocupações com a conta de luz, de telefone, do dentista? Ou então, porque será que os artistas se apresentam a nós como enviados dos deuses?

“Eu procuro passar para as pessoas....” , ou “Eu sinto a necessidade de dizer para as pessoas...” ou, “Nesse quadro eu quis traduzir o sentimento de...”.

Não seria mais verdadeiro dizer: minha profissão é ser artista, então eu a procuro fazer bem feita? Procuro fazer coisas belas para que as pessoas gostem?

Mas eu queria descer mais uma oitava nessa linha de pensamento, me acompanhe: E nós, os mortais, os que não sabemos tocar Mozart, pintar quadros, representar, dançar ou fazer ginástica olímpica? Nós os gerentes comerciais, secretários, bancários, operadores de telemarketing ou professores? Nós os que desempenhamos tarefas muitas vezes enfadonhas, repetitivas, desgastantes, frustrantes, estressantes, buscamos inspiração em quem ou em quê?

Os artistas e intelectuais, vivem nos fazendo acreditar que eles sim, têm um motivo para viver, um significado para as suas vidas. E que nós somos apenas a massa, o resto. Simples coaduvantes, às vezes nem isso.

De onde vem a sua inspiração para montar uma trabalhosa planilha de cálculos? Aquela, que o seu chefe irá encher de defeitos?

Eu tenho me inspirado na resposta simples do pintor, que aliás é um pintor renomado, e vou ainda mais fundo: Minha inspiração sou eu mesma, minha inspiração é minha própria vida. Procuro fazer bem feito o meu trabalho porque ele leva a minha marca, porque é o meu texto neste teatro da vida. Sim, é um trabalho quase anônimo. Não vou ganhar aumento de salário, nem mesmo elogio, não me recordo se alguma vez recebi elogio em ambiente de trabalho. Mas aquilo que sai de minhas mãos sai bem feito, pelo menos eu me esforço, seja um complicado relatório ou um simples bilhete. Porque saiu de mim, do meu espaço. Porque é meu.

Já fui demitida algumas vezes. Me recordo de uma vez, onde me foi imposto aquele humilhante período de aviso prévio. Nessa situação, o funcionário trabalha envergonhado, como que evitando a presença dos colegas. Ele é um nada, uma carta fora do baralho, mas precisa continuar ali, ensinando serviço, atendendo solicitações e até levando broncas. Comigo não foi diferente, eu trabalhava no Departamento Financeiro de uma empresa. Quando lá cheguei, o setor que me destinaram estava uma total bagunça. Eu fiz o que sabia fazer e sei até hoje – coloquei a bagunça em ordem. Então o empregador constatou que tudo ficara tão bom, tão perfeito, que ele podia perfeitamente me dispensar, e colocar uma pessoa para continuar aquele trabalho, ganhando a metade do que eu ganhava. E o fez. E a mim coube ensinar o serviço àquela pessoa.

O rapazinho meu substituto, não sabia sequer ligar um aparelho de computador, então eu dediquei um dia desse aviso prévio apenas para ensinar essas noções a ele, o básico. Como ele não sabia fazer nenhum tipo de redação comercial, eu criei vários modelos de cartas de diferentes situações, e salvei todas para ele na área de trabalho. E passei o resto desse período ao lado dele, como uma esforçada professora. Eu fiz tudo isso não porque sou um amor de criatura, mas porque tenho amor ao trabalho.  Porque amo o espaço que meus dois pés ocupam no chão deste planeta.

No meu último dia lá dentro, após ter ensinado tudo o que devia, arquivado tudo o que tinha para ser arquivado, apareceu sobre minha mesa um documento, que não precisava sequer ser arquivado, era uma cópia de uma fatura que já houvera sido paga, o processo já estava até em arquivo morto. Mas eu me vi subindo as escadas, indo ao setor de arquivo morto, puxando a caixa correspondente, abrindo, localizando o processo, arquivando aquele inútil papelzinho – minha última demanda ali dentro.

Eu estava sentada no chão daquela sala, sozinha. E foi ali rodeada de caixas com papéis velhos, que eu agradeci a Deus, por tudo o que conseguira realizar naquele local. E parti, com a alma em paz, o meu trabalho tinha sido feito, e bem feito. Se não tinha sido reconhecido, era problema daqueles idiotas, não meu.