quinta-feira, 26 de junho de 2008

Café com pão

Será que vocês agüentam mais uma historinha de Praça da Sé? E antes que venham dizer que estou a compor uma trilogia sobre, vou logo falando que acho trilogia coisa de gente fresca, e o que é pior, sem assunto. O sujeito ao invés de partir para novos temas fica fazendo variações em cima de um mesmo, e usa essa palavra modernosa aí para se justificar. Tudo bem que Bach e outros grandes da música erudita o faziam, eram as tais variações, mas eles podiam. O resto é frescura e falta de imaginação do povo. Tem uns que chamam a isso “revisitar” antigos temas, e essa palavra revisitar também acho frescura, lá em casa isso tem um nome, é chover no molhado.

Dito isso, vamos a ela; a verdade é que quero contá-la porque posso acabar esquecendo, comigo isso de andar com caderneta para anotar possíveis temas não funciona, porque tenho uma letra monstruosa, que depois não consigo decifrar. A história não se passou comigo, mas com meu irmão, o Eli, quatro anos mais velho do que eu.

Na década de setenta, meu irmão passou a integrar um grupinho incipiente naquela época, chamado Jovens da Verdade. Eram rapazes e moças, que com suas bíblias, um violão, uma caixa de som, um ou dois microfones e muita boa vontade, andavam por aí a falar de Jesus nas ruas e praças da cidade. A sede da missão ficava na Rua das Carmelitas, bem próximo da Sé. Embora eu não tenha feito parte do JV – eles eram conhecidos assim – também cheguei a fazer parte de cultos dessa natureza, com jovens da igreja que eu freqüentava, chamávamos a isso de “cultos ao ar livre”. Fazíamos um culto voltado aos transeuntes, onde anunciávamos o evangelho, convidávamos pessoas a aceitar Jesus, cantávamos hinos. Uma vez terminado o trabalho, nos dividíamos em grupos menores, e passávamos a orar por aqueles que quisessem receber oração.

A juventude cristã de hoje, embora possua em suas igrejas equipamentos de som ultra sofisticados, prefere não sair mais às ruas. Eles gostam de ficar nos seus belos templos, fazendo encontrões, louvorzões, acampadentros, tardes da pizza, noites do sorvete e exibições de dança. Mas se isso os faz felizes, e não incomoda as suas consciências, eu não tenho nada com isso e muito menos a minha história, que poderia ter seguido perfeitamente sem esse aparte. Continuemos.

Então eles estavam lá, na Praça da Sé, numa noite fria, cantando, orando, falando de Jesus aos passantes.

Quando seus olhos fecharem
Pra grande viagem
Eu fui pra Jesus, eu fui pra Jesus...
Quando você me procurar
E não mais me encontrar
Eu fui pra Jesus, eu fui pra Jesus...
Quando seus olhos chorarem de saudade
Eu fui pra Jesus
Vivo esta vida esperando pelo dia
De ir com Cristo morar
Sim ir morar
Junto a Jesus...


Nesse meio tempo um sujeito que já era por lá conhecido, com cara de pouquíssimos amigos, o cabo de um revolver ostensivamente exibido à cinta, fala no ouvido do meu irmão, que estava tocando violão:

- Eu não quero cantoria na MINHA praça, e eu vou matar você para dar exemplo!

- Tudo bem, disse o meu irmão. Mas você espera a gente acabar o culto? O sujeito disse que esperava.

Quando seus olhos fecharem
Pra grande viagem
Será que você irá pra Jesus?
Quando eu lhe procurar
E não mais lhe encontrar
Será que você
Irá pra Jesus?
O Senhor padeceu lá na cruz
Só para lhe salvar
Peça a Deus o perdão de seus erros
E receba Jesus
Sim, a Jesus
O Salvador
O Salvador


Terminado o culto, o sujeito arrastou meu irmão para um bar que ainda existe ali, você pode conferir na foto. Pediu duas cachaças. Vou deixar você beber, antes de morrer, disse.

- Pode ser café, perguntou meu irmão? É que eu não bebo...

Vieram a cachaça e o café, colocados sobre o balcão por um assustado rapaz, que devia conhecer a má fama do tal sujeito.

- Já que você vai me matar, disse meu irmão, posso antes falar de Jesus pra você?

- Seja rápido, disse o sujeito, tirando o revólver das cintas e colocando-o acintosamente sobre o balcão. Porque em seguida você vai morrer.

Então meu irmão falou de Jesus pra ele.

“Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer, viverá eternamente...”

E terminou perguntando ao sujeito se ele não queria aceitar Jesus como seu Salvador. Então o sujeito disse:

- Não, minha vida não tem mais jeito. Sou um caso perdido, um assassino, já perdi a conta de quantas pessoas matei. Eu ia realmente matar você para servir de exemplo. Vamos fazer assim: eu não vou aceitar o seu Jesus. Mas vou permitir que daqui para a frente você e seus amigos preguem aqui. Escutaram, pessoal? disse ele elevando a voz aos presentes. Esse sujeito aqui mais o seu grupo, tem a MINHA PERMISSÃO para pregar na Praça da Sé a hora que quiser, e sob a minha proteção. E recolocou o revólver para dentro das cintas.

E foi assim que meu irmão não morreu. E ele, e os rapazes e moças dos Jovens da Verdade continuaram a fazer seus cultos ali, muitas vezes, mas muitas vezes mesmo.