sábado, 29 de março de 2008

Ao que vem depois

 
Titia Amélia foi minha professora de Escola Dominical. Escola Dominical era um costume da igreja protestante na minha época, e como o próprio nome já diz, era uma reunião que acontecia aos domingos, pela manhã, onde as crianças e também os adultos estudavam a bíblia. Embora fosse também destinada a adultos, a Escola Dominical sempre foi voltada mais para as crianças. Todos se reuniam em classes, separados por faixa etária, então existiam as classes dos mais pequeninos, depois os intermediários, que naquela época se chamavam juniores, os rapazes, as moças, e por fim os adultos. Todas as classes tinham nomes. A classe dos pequeninos se chamava Cordeirinhos de Jesus. Os juniores eram Lírios do Vale. A classe de moças era a classe Estrela da Manhã. Os jovens eram os Amigos de Wesley. E finalmente a classe dos adultos, que se chamava Vencedores por Cristo. Tudo muito inocente, e portanto muito lindo.

Minha tia era o que se chamava na época de moça fina e prendada. Sabia costurar, tricotar e bordar com perfeição. Por conta disso, eu e minhas bonecas, tínhamos as mais lindas roupas. Lembro-me que ela fazia para as minhas bonecas roupas que até hoje seriam desejadas por mães, para vestir seus bebês, tamanho o capricho e o esmero. Eu possuía uma variedade de luvinhas, boinas, gorros, chales e manteletes, todos feitos por ela. Ela também me fazia bolsas de crochê, com um fio chamado ráfia, nunca mais vi nada desse tipo. O fecho e a correntinha ela comprava em lojas apropriadas, e fazia para mim uma coleção de bolsinhas coloridas, ao ponto de eu ter uma para combinar com cada vestido.

Minha mãe que também era muito caprichosa com minhas roupas, toda semana aprontava de véspera minha roupa de ir à Escola Dominical, havia um canto em meu armário onde já ficava lá, prontinha, a toalete que eu usaria no domingo pela manhã – vestido, meias, sapatinhos, bolsinha e os enfeites de cabelo. Ao lado, eu colocava minha bíblia – com meu nome gravado em letras douradas, meu hinário, que era um livro com os hinos adotados pela igreja, e minha revista, pois que tínhamos uma revista, de onde seguíamos as lições. Claro que a minha revistinha, na véspera, já estava super lida, super estudada, eu já tinha colorido todos os desenhos que havia para colorir, já tinha decorado todos os versículos bíblicos que havia para decorar, me lembro que às vezes eu parava de brincar e ia olhar no armário, só para conferir todo o meu kit Escola Dominical. Amava aquilo tudo.

A nossa igrejinha era pequena, singela, pintada de branco, um encanto. Fora construída por um americano, Reverendo Schisller, ela tinha aquela arquitetura típica de igrejinha rural americana, possuía até um campanário, vazio, nunca houve um sino ali. Ela ficava na localização mais elevada do bairro, dava para vê-la de qualquer lugar de onde se estivesse, e eu a amava. Ela ainda está lá, mas, claro, alguém já se encarregou de eliminar todos os vestígios da antiga construção.

Titia Amélia nos aguardava aos domingos, sempre com algum mimo para ilustrar suas aulas. Desenhos e figurinhas recortados em cartolina para colorir, figurinhas para ilustrar as aulas, essas figurinhas coloridas eram revestidas de flanela, e eram colocadas num cavelete sobre uma flanela colorida, esse recurso se chamava flanelógrafo. E era assim que ela mostrava para nós cenas da bíblia, e nos ensinava, para nosso encanto. Ao final nos presenteava com alguma figurinha recortada em cartolina com algum tema relacionado à lição. Ela também sabia cantar e tocar piano, devo a ela saber um pouco desse instrumento. Então ela sempre nos ensinava canções religiosas, que chamávamos de corinhos. Esses corinhos falavam de Jesus, mas também de relacionamentos de amor e cortesia entre as crianças.

Veio dela, dentre muitos outros, o ensinamento das três regrinhas de ouro: com licença, faz favor, muito obrigado. Regras que uso até hoje, e não é por estilo, é hábito mesmo, que para mim é tão natural como piscar, pois aprendi na tenra idade, é nessa época que se ensina esse tipo de coisas.

De todas as suas aulas, a que mais marcou, foi uma que ela intitulou como: O que vem depois. Ela colocou uma mesinha no centro da classe, com uma moringa sobre ela. Naquele tempo se usava moringa com água. Então ela chamou uma criança, e disse: faz de conta que você está chegando da escola, morto de sede, o que você faz? A criança se dirigiu à moringa e tomou um copo de água. Propositalmente, havia na moringa apenas a quantidade equivalente a um copo. Aí titia chamou uma outra criança, e simulou a mesma situação. Não havia mais água. Então titia falou: então, crianças, quando vocês tomam a última água da moringa, o que vocês fazem? Todos nós: avisamos a mamãe! Ela: isso mesmo! Se você já for grandinho, você pode você mesmo encher novamente a moringa. Mas s
e você não puder carregar, avise a mamãe. Pense sempre naquele que vem depois de você. Isso é amor, consideração e respeito. Isso é o que faz toda criança que ama Jesus, pois se Jesus quer o bem de todos, nós também devemos querer, não é mesmo?

Era dessa forma que titia nos conduzia pelos caminhos da cidadania.

Hoje nos escritórios, quando vou usar a copiadora, a impressora, procurar água no galão, ou papel higiênico no banheiro, e não encontro a coisa certa, penso que foram poucas as titias amélias que passaram por este mundo. Alguém passou por ali, usou o último recurso que havia, resolveu a sua necessidade e...largou o problema para o que vem depois.

E assim fazemos com o lixo que descartamos na via pública, com a bagunça que deixamos nos banheiros, com a sujeira do cachorro que levamos a passear, nas prateleiras das gôndolas dos supermercados que desarrumamos, o problema não é nosso, é do outro, ora, o outro, que se dane o outro.

Nos meus tempos de criança, aprender sobre Jesus, era também aprender a se relacionar com o próximo. Era aprender a conviver em harmonia, com educação e respeito. Saudades daqueles tempos.

Titia Amélia faleceu no dia 22 de setembro de 2005, exatamente no momento da entrada da primavera. Claro! Não poderia ser de outro modo. Aquela linda flor desabrochou para a eternidade.