Embora nunca tenha me casado, ainda assim considero-me uma viúva. Tenho cinquenta anos, e um filho de vinte, que criei sozinha. Com exceção da ajuda de meus pais, não contei com mais ninguém.
Quando tive o meu filho, a dura luta para criá-lo sozinha, somada a desilusão e a tristeza de saber-me abandonada, levaram-me a me afastar do convívio dos amigos; tornei-me uma mulher só. Hoje arrependo-me disso, mas é difícil para mim retomar esse fio perdido.
Identifico-me, portanto, com a história que vou contar: é a história da viúva de Sarepta. O original você encontrará no texto sagrado, no livro de I Reis, no capítulo XVII, versículo 8 em diante. A história se deu assim:
Conta a bíblia que a nação israelita, através dos seus reis e governantes, enveredou por caminhos errados, tudo muito igual, não é mesmo? Havia naqueles tempos um profeta, de nome Elias, que era zeloso do bem, e inconformado com o rumo por que seguia o seu país. Então esse profeta, com a coragem que só um verdadeiro homem de Deus pode ter, encarou o rei e profetizou que, por muitos anos, não haveria mais chuva naquele lugar, nem tampouco orvalho. Era a conta divina, por todo o pecado daquela nação. E foi o que realmente aconteceu, houve grande fome e desolação, todos os rios e mananciais vieram a secar, extinguiram-se as fontes de alimentos.
Foi então que Elias recebeu de Deus uma ordem: vá à cidade de Sarepta, e procure lá por uma viúva, porque ela irá lhe sustentar.
Eu não saberia dizer como foi que Elias recebeu essa ordem: se foi sonho, se foi uma visão, se foi um sentimento. Só sei que ele fez exatamente assim. Lá chegando, encontrou de fato uma viúva, a quem pediu que lhe desse pão. A viúva respondeu que infelizmente não havia; e lhe deu a conta de todo o seu suprimento: ela tinha apenas um punhado de farinha, um pouco de azeite, e com alguns gravetos que estava procurando, ia fazer com esses ingredientes um último pão, para si e seu filho, depois iriam morrer de fome.
Essa cena sempre me emocionou: uma viúva catando lenha para fazer seu último pão. Claro que nunca passei fome, claro que minha vida nunca chegou a esse ponto. Mas é assim que eu me sinto sempre: alguém que tem muito pouco com o que viver, e esse pouco de que falo, não é somente o recurso financeiro (que é pouco também). Mas é o pouco de equilíbrio emocional. É o pouco de soluções. É o pouco de sabedoria. É o pouco de amigos influentes. É o pouco de resistência física, é sempre o pouco, sinto que estou sempre encurvada catando algo pouco com que viver...
Com a mulher da nossa história também deveria ser assim. Se a vida de uma mulher sozinha nos dias de hoje é difícil, quanto mais naqueles tempos esquecidos de Deus...
Mas o profeta Elias insistiu em que ela o atendesse primeiro, que fizesse sim aquele pão, mas que o trouxesse a ele, depois ela faria pão para ela e para o seu filho. E acrescentou que Deus dizia que a farinha e o azeite não iriam faltar.
Eu sou sincera em dizer aqui que não tenho bem certeza se foi fé ou medo do profeta que moveram aquela mulher. Num tempo em que imperava o patriarcalismo, num tempo em que a figura feminina não tinha nenhuma importância, num tempo em que mulheres sequer eram contadas como gente, uma viúva não teria voz nenhuma para se defender. O sentimento que moveu o coração daquela mulher a bíblia não relata. Só relata que ela atendeu ao profeta, e aconteceu exatamente o que ele tinha dito: a farinha e o azeite não acabaram por um longo tempo.
Eu não tenho bem certeza se é coragem ou covardia o que me faz sair da cama todos os dias bem cedo para enfrentar a dura rotina. Já me passou pela cabeça ser cantora na noite, vendedora de cachorro quente numa praia, qualquer coisa assim bem romântica ou descompromissada. Não estou bem certa se é a responsabilidade ou o medo que me impulsionam a continuar procurando gravetos no chão. Sei que gostaria muito que aparecesse alguém e me dissesse: confie em mim, o alimento para você e para os seus nunca irá faltar. Gostaria muito de ter um Elias abençoando as panelas da minha história.
Mas esse Elias nunca chega, então sigo tocando minha vida de viúva, sempre temerosa com a estiagem, sempre espreitando o céu à espera de chuva. Sempre convivendo com meu pouco azeite e minha pouca farinha.