quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Eu venho como estou

Délia Ferraz Fávero foi uma das primeiras mulheres brasileiras a se formar em medicina. Ela morava na Rua São Carlos do Pinhal, atrás da Avenida Paulista, e quem apertava sem-cerimoniosamente a campainha do apartamento dela era eu, aos quinze anos. Trazia um recado de minha mãe, que a conhecia da igreja presbiteriana.

A porta se abriu, fui atendida pela distinta senhora. E antes de dar a ela tempo de falar, já fui entrando no assunto:

- Doutora Délia, minha mãe me mandou aqui e... A boa senhora me atalhou, franqueou a porta e disse:

- Entre, Elizabeth. É bom você sentar, e descansar.

Eu me assentei, e voltei à carga:

- Então, doutora Délia, minha mãe quer saber se....

- Você aceita um copo de água, Elizabeth?... está calor, não está?...

Embora desengonçada nos meus quinze anos, eu tinha recebido alguma noção de boas maneiras de minha professora de escola dominical e tia Amélia. Rapidamente vi que estava no mundo dos adultos, e entendi que devia me comportar melhor. Aprumei-me na poltrona, estiquei a barra da saia, assentei-me com mais elegância e respondi que aceitava o copo de água sim, e obrigada.

Então a distinta dama passou a me fazer várias perguntas. Na verdade ela tratava de me sossegar. Como estavam todos lá em casa, como andavam meus estudos, se eu não estava me descuidando na leitura da bíblia, quis saber que texto bíblico eu estava a ler. Indagou se eu estava freqüentando a escola dominical e os cultos regularmente, e se eu estava atenta às normas de bons costumes e boa educação para as moças. A tudo respondi direitinho, felizmente naqueles tempos eu ainda era uma jovem comportada.

Em seguida ela pegou um recorte de revista de sobre uma mesinha, que insistiu para que eu lesse, e passou a falar dele. Era um texto que falava da preocupação de muitos crentes sobre as apostasias e heresias que viriam nos últimos tempos. A doutora Délia era conhecida pelas suas práticas de devoção, piedade cristã e zelo pela palavra de Deus, e ela estava muito preocupada com os rumos de alguns pensamentos mais liberais. Depois passou a falar sobre a provável perseguição aos verdadeiros crentes, que haveria de vir também nos últimos dias.

- Leia muito a bíblia minha filha, ela disse, decore versículos e se possível até textos o mais que puder, pois dias virão em que a bíblia será proibida a nós, dias de perseguição, terríveis.

Foi então que ela me indicou o lavabo, e disse que eu me preparasse, pois o almoço seria servido. Desconhecedora de certas regrinhas básicas da boa educação, eu tinha chegado exatamente na hora do almoço.

Eu me preparei, e fui introduzida na sala de jantar, onde já nos aguardava o seu esposo e uma empregada idosa pronta para servir. O almoço foi simples, porém excelente ao meu gosto adolescente. As aulas de etiqueta de titia me valeram, eu me saí bem.

À mesa, após darmos graças, a conversa seguiu no mesmo tema de minha recepção: as apostasias, as contendas bíblicas sobre temas desnecessários; o esposo dela disse que certas pessoas andavam a ler a bíblia, não mais para aprender com a Palavra, mas para procurar erros e discordâncias, o que fez doutora Délia exprimir um oh! de consternação.

O esposo dela era o doutor Flamínio Fávero, ele era, ou melhor, é ainda, mesmo tendo falecido, uma autoridade em medicina legal no Brasil e quiçá no mundo. Na época acumulava cargos de direção no Hospital das Clínicas e na Casa de Detenção, mais popularmente conhecida como Penitenciária do Carandiru.

Hoje eu consigo ver o quão ilustre foi aquele almoço...

Veio a sobremesa, veio o cafezinho, e eu me sentia orgulhosa de estar tomando café entre adultos pela primeira vez.

Foi segurando delicadamente a xícara, que doutora Délia deu uma discretíssima olhada ao relógio de parede, o que me fez entender que acabava ali aquela reunião.

Foi então, e só então, que ela perguntou qual o recado que eu trazia. Tomei muito boa nota dessa postura da elegante dama.

- Sim, doutora Délia, a mamãe quer saber se...e dei o recado. Ela me escutou atentamente, fez uma ou duas perguntas, e disse que sim, que iria providenciar, e minha mãe que aguardasse notícias suas.

Então o casal me acompanhou até a porta, não sem antes recomendarem muitíssimo que eu prestasse atenção ao atravessar a avenida Paulista, e que tomasse cuidado com minha bolsa, sabe filha, disse o doutor Flamínio, ouvi dizer que hoje já praticam assaltos à luz do dia!

E isso era na década de setenta...

Os dois ficaram aguardando até que as portas do meu elevador se fechassem. A mocinha que pisava na São Carlos do Pinhal e dobrava a Bela Cintra era outra bem diferente daquela que por ali passara pouco antes. Eu caminhava orgulhosa de mim.

Naquele ano, seria minha formatura ginasial. Minha mãe, ao contrário de outras, tão pobres quanto nós, não se interessou por me fazer o necessário vestido longo cor de rosa para a solenidade, e aquilo me entristeceu demais. Fui a única de minha turma que não participou da festa.

Mas hoje eu entendo que o meu debut foi ali...

Tenho um metro e sessenta e sete de altura, e poderia jurar que o meu derradeiro centímetro eu alcancei naquele dia.