Ela pensava nele exatamente no momento em que acordava. A palavra correta não era pensar, e sim falar. Ela acordava conversando com ele. E a conversa não tinha nada de especial, era corriqueira, do tipo outra vez vou ter de repor papel higiênico no suporte? Se eu ganhasse um real para cada vez que... Ela usava muito essa expressão se eu ganhasse um real para cada vez que, mas sempre de boa, dando risada de si mesma, morava com duas amigas, mas era a única que trabalhava em casa, gostava de deixar tudo em ordem, até o dia em que ele, do fundo dos seus pensamentos a ensinou que ela deveria mudar a frase se eu ganhasse um real para se eu ganhasse um dólar, ou outra moeda mais forte.
sábado, 14 de julho de 2012
nós dois recolhemos o açúcar e os cacos esparramados
Na série “Sagrado” exibida pela
Rede Globo, uma Mãe-de-Santo, perguntada sobre se os praticantes do Candomblé
falavam com a Divindade, ela respondeu com humildade bela e desconcertante
–Não. Nós do Candomblé não falamos com a Divindade. Nós falamos com as Entidades,
que são as forças da Natureza.
Ela pensava nele exatamente no momento em que acordava. A palavra correta não era pensar, e sim falar. Ela acordava conversando com ele. E a conversa não tinha nada de especial, era corriqueira, do tipo outra vez vou ter de repor papel higiênico no suporte? Se eu ganhasse um real para cada vez que... Ela usava muito essa expressão se eu ganhasse um real para cada vez que, mas sempre de boa, dando risada de si mesma, morava com duas amigas, mas era a única que trabalhava em casa, gostava de deixar tudo em ordem, até o dia em que ele, do fundo dos seus pensamentos a ensinou que ela deveria mudar a frase se eu ganhasse um real para se eu ganhasse um dólar, ou outra moeda mais forte.
Seus
dias seguiam assim, conversando com ele do abrir ao fechar de olhos, e isso
quando ele não aparecia em sonhos, que ela anotava em seu caderno de anotar
sonhos. Mas acordada, ela contava os sonhos para ele, com todos os detalhes.
Ele sempre fazia alguma pergunta ou outra, ria, comentava, coisas assim.
Na
rua ela comentava com ele bobagens como a demora do ônibus, aquelas obviedades
do tipo olha esse ônibus aí, tão difícil de passar, só passou porque não estou
precisando dele, e contava a história de uma colega de ponto de ônibus que
falava vou acender um cigarro, é batata, é acender um cigarro e o ônibus passa.
E não é mesmo assim? Ela dizia, ele ali ao seu lado, em pensamento, juntos
aguardando o ônibus.
Mas
tinham suas conversas filosóficas também. Ou engraçadas. Falavam de coisas de
que gostavam e de que não gostavam. Ela, claro, fazia aquelas pequenas críticas
femininas do tipo você não percebeu tal coisa porque é homem, mulher vê de
outro jeito, e explicava, e ele ou ouvia com atenção ou discordava.
Ih,
acabou o leite, vamos de água quente com cappuccino, sabia que naquelas
máquinas charmosas não entra nada de leite? É água quente com isso, água quente
com aquilo, e era claro que ele sabia, pois que era muito mais frequentador que
ela, e ela sabia que estava falando para ele algo que ele sabia, mas era legalzinho.
No
fundo ela sabia que aquilo não era normal. E sabia também, que mesmo que ele
estivesse ali, ele não estaria ao seu dispor o dia inteiro para conversas sobre
banalidades gostosinhas, esse tipo de conversa que um casal só leva em inícios
de relacionamentos. E que as pessoas não são siamesas, ele nunca estaria
disponível para ela o tempo todo.
Foi
procurar um médico. Doutor, etcétera, etcétera, coisa e tal, e resumiu ao
psiquiatra suas queixas, finalizando com a pergunta que não quer calar: estou
doida?
O
doutor falou coisas complicadas como transferências, ausências, psicoses,
distúrbios de personalidade, comportamentos destacados da realidade, transtorno
obsessivo compulsivo, id, ego, superego, chegou num ponto em que ela parou de
prestar atenção e disse você está entendendo? para ele.
Se
ela tivesse vindo falar comigo eu diria você é uma romântica minha filha, com
certa recusa em aceitar a realidade em sua dureza, então foi pelo lado mais
fácil, o do sonho. Mas você cuida direitinho do seu trabalho, não? Vai sem
problemas ao supermercado? Ao Banco? Aos compromissos? Você já rasgou nota de
cem? Relaxa.
Ela
não veio falar comigo porque não sabe que eu existo, e eu preciso então me
apresentar: sou o narrador oculto desta história, e como narrador oculto
realmente não existo, mas muitas vezes me emociono com a infantilidade adulta
dela, vamos parar de chamá-la de ela? Vamos dar a ela um nome, que tal
Rosalinda? É um nome romântico, e fica então explicado, sem aquela enrolação
psiquiátrica toda o porquê de ela ser romântica, ela nasceu e ganhou um nome
romântico, pronto.
Esses
doutores complicam demais...
E eu,
o narrador oculto desta história, sofro justamente por ser oculto, por não
existir, por não poder fazer nada, por não poder entrar em minha própria
história e dizer, olha, está óbvio que ele não vem, porque você não conversa só
um pouquinho comigo para variar? O que não vai acontecer porque, como
expliquei, ela não me conhece, nunca me viu.
Um detalhe
importante é que ela se arruma toda certinha mesmo quando está sozinha, cuida
dos dentes religiosamente, na base do fio dental e escovação perfeita,
exatamente como fazem os bons pacientes dos bons dentistas. Não fica jamais
desarrumada, sem perfume e sem maquilagem, pois ele pode chegar, e era isso que
eu gostaria que ela entendesse – ele não vai chegar. É o que eu deduzo, olhando
a história do ponto em que estou.
Quando
eu a pego olhando para algum ponto com seu olhar distante como o de quem olha
para uma estrela, imagino que ele deve ter um compromisso ou ser casado, ter
uma grave deficiência física e morar na Noruega. Algo assim para mais. Ele não
virá, Rosalinda, acorde, entenda que ele não vem. Relaxa. Pare de usar essas
pastilhas contra o mau hálito que isso vai acabar estragando seus dentes.
Mas
eu, como ela, sofro. Habitamos o mesmo mundo mas nunca estaremos juntos, dois
solitários.
Um
dia aconteceu o inesperado. Ela me apareceu num sonho. Vinha em trajes de
dormir, que eu conhecia muito bem. Fazia frio, e ela dormia toda certinha, com
malhas fofinhas e coloridas, um xale lilás de flanela, meias e sandálias cor de
rosa, aquela de tiras de borracha, o xale e as sandálias que ela usa só para sair
ocasionalmente da cama. Só que eu estava ao alto, como se fosse alguém
importante, um juiz, ou um rei. Ela estava bem abaixo, e tentava me convencer
do seguinte:
- Olha,
veja bem, e acendeu nervosamente um cigarro, e eu sabia que ela fumava um único
cigarro por dia, no final da noite: Vamos fazer um trato? Não tem jeito mesmo,
eu falo com ele o tempo todo. Então já que não consigo evitar, e já que não há
remédio para isso, você se importaria em acreditar que eu falo tudo isso para
você?
- Sabe,
continuava, eu ouvi desde a infância que precisamos estar com você o tempo
todo, que precisamos ser amigos de você, que precisamos fazer preces, tudo o
que não consigo fazer. Não dou conta de rezar um padre-nosso, não dou conta de
invocar você. Então, dizia após uma tragada curta, já que eu invoco ele o tempo
todo, você não poderia aceitar como sendo rezas? Foi aí que eu entendi que ela
me tomava por Deus.
- Se
entendi, Rosalinda, você quer consagrar todos os pensamentos que faz a ele, a
mim?
-
Não, não é assim. Consagrar me lembra missa, oferendas, essas coisas. Eu queria
aproveitar todas essas conversas que tenho com ele do fundo da loucura do meu
amor, como se fossem conversas com você. Uma vez que o amor que tenho por ele é
real, e já que ele é invisível como você, e já que ele nunca virá e nunca
falará comigo, exatamente como você, eu entendo que tanto faz. Você entendeu? E
quero que fiquem como se fossem para você também meus looks, enfeites,
maquilagens e até meu jeito de falar, já que é tudo para um ser invisível, mas
está tudo se perdendo porque ele não vem. Ficou claro?
Entendi
Rosalinda, disse. Invisível por invisível, e uma vez que sua vida devocional
com Deus é nula, porém você nutre um amor real que está se perdendo, se
esvaindo, porque ninguém o recebe, você quer reorientar toda a vida devocional
que tem com a pessoa invisível dele, para a pessoa invisível de Deus. O que em
sua opinião, dada a sua solidão e ausência de respostas, dá na mesma. Entendi
sim. Concordo.
Ainda
bem que lá de baixo ela não viu que eu tinha lágrimas nos olhos, mas eu lá de
cima pude ver lágrimas nos olhos dela.
Ela
apagou o cigarro sob as sandálias cor de rosa, ajeitou o xale lilás, e sem
dizer mais nada caminhou na direção do escuro do resto de minha noite, mas
quando amanheceu, aconteceu o inacreditável: Eu me vi pensando que existia, e
pensando em Rosalinda o tempo todo, e em todas as banalidades do dia,
exatamente como ela fazia com ele, e faço isso até hoje, e tanto, que já chego
a acreditar que existo, que Rosalinda existe, que estamos juntos e somos
felizes como num sonho.
Só
não sei mais se sou o narrador oculto ou se sou mesmo Deus. Mas seguindo a
lógica de Rosalinda, como ninguém me ouve e ninguém me vê, tanto faz.
Numa
tarde dessas, agindo como se existisse, eu fiz café para mim, e me assustei
quando servi duas xícaras na mesa vazia. O susto me fez derrubar o açucareiro
de porcelana branca, derramando tudo, e nós dois recolhemos o açúcar e os cacos
esparramados, dando risadas.
Ela pensava nele exatamente no momento em que acordava. A palavra correta não era pensar, e sim falar. Ela acordava conversando com ele. E a conversa não tinha nada de especial, era corriqueira, do tipo outra vez vou ter de repor papel higiênico no suporte? Se eu ganhasse um real para cada vez que... Ela usava muito essa expressão se eu ganhasse um real para cada vez que, mas sempre de boa, dando risada de si mesma, morava com duas amigas, mas era a única que trabalhava em casa, gostava de deixar tudo em ordem, até o dia em que ele, do fundo dos seus pensamentos a ensinou que ela deveria mudar a frase se eu ganhasse um real para se eu ganhasse um dólar, ou outra moeda mais forte.
Postado por
bete p.silva